Notícias

Um ano depois: O impacto da decisão do STF sobre a separação de bens

Publicado em 19/11/2025

Rudyard Rios

O artigo mostra como a medida vem alterando casamentos, um ano após decisão do STF liberar pessoas acima de 70 anos para escolherem o regime de bens.

Em fevereiro de 2024, o STF fixou, no julgamento do Tema 1.236 da repercussão geral (ARE 1.309.642), uma das decisões mais emblemáticas do Direito de Família contemporâneo: a separação obrigatória de bens para pessoas maiores de 70 anos deixou de ser uma imposição legal, passando a depender da vontade expressa das partes, mediante escritura pública.

A tese firmada foi clara:

“Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública.”

A decisão representou uma guinada constitucional, o reconhecimento de que a idade, isoladamente, não retira a capacidade plena para decidir sobre o próprio patrimônio e as próprias relações afetivas. Um ano depois, os reflexos começam a se delinear, revelando um cenário de avanços, cautelas e desafios.

Mais do que uma mudança de regime patrimonial, a decisão do STF representa uma inflexão contra o etarismo institucionalizado.

Durante décadas, a presunção de incapacidade patrimonial após os 70 anos expressou uma visão paternalista que, sob o pretexto de proteger, retirava a autonomia e o protagonismo da pessoa idosa.

Ao reconhecer a liberdade de escolha no regime de bens, o Supremo rompeu com esse estereótipo da velhice tutelada e reafirmou que envelhecer não significa perder discernimento, mas acumular legitimidade para decidir a própria vida.

Essa mudança dialoga com o movimento internacional de combate ao ageísmo (ou etarismo), reconhecendo que a limitação por idade é uma forma de discriminação tão grave quanto a de gênero, raça ou orientação sexual.

O Direito de Família, portanto, dá um passo civilizatório: substitui o medo de abuso pela confiança na capacidade, transformando proteção em empoderamento.

Do paternalismo à autonomia

O art. 1.641, II, do CC previa o regime obrigatório de separação de bens como uma medida protetiva, voltada a impedir casamentos “por interesse” e preservar o patrimônio da pessoa idosa.

O STF, contudo, entendeu que essa regra violava a dignidade da pessoa humana, o direito à igualdade e a liberdade de autodeterminação, ao impor uma limitação automática e discriminatória baseada apenas na idade.

Como observou o ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, a norma “impede que pessoas plenamente capazes, em gozo de suas faculdades mentais, definam o regime mais adequado à sua vida em comum”. A Corte ainda modulou os efeitos da decisão: a mudança vale para o futuro, sem reabrir processos de inventário ou partilha já encerrados, proposta acolhida pelo ministro Cristiano Zanin, em respeito à segurança jurídica.

Reflexos no primeiro ano

1. Casamentos e uniões com liberdade parcial

Segundo levantamento do CNB/PR – Colégio Notarial do Brasil – Seção Paraná, aproximadamente 20% dos casais em que pelo menos um dos nubentes tem mais de 70 anos já optaram por um regime diferente da separação total de bens.

Entretanto, como mostrou a Agência Brasil em março de 2025, a maioria dos casamentos envolvendo idosos ainda mantém o regime tradicional de separação, seja por desconhecimento da nova regra, seja por orientação conservadora de familiares e tabeliães.

2. Aumento de escrituras e pactos antenupciais

Advogados e tabeliães relatam maior procura por escrituras públicas para formalizar a escolha de regime diverso, tanto em uniões estáveis quanto em casamentos. O Colégio Notarial do Brasil (CNB/SP e CNB/DF) indica que a decisão estimulou uma nova cultura de planejamento patrimonial e sucessório entre idosos, que antes se viam compelidos a aceitar a separação obrigatória.

3. Inventários e disputas sucessórias

Nos tribunais estaduais, começam a surgir pedidos de alteração de regime de bens com base no novo entendimento, especialmente em uniões estáveis formalizadas há poucos anos. No entanto, a modulação de efeitos imposta pelo STF tem servido como barreira para reabertura de partilhas já concluídas.

Casos recentes de TJ/SP e TJ/MG ilustram essa cautela: os juízes têm permitido a mudança apenas com efeitos futuros, evitando conflitos sucessórios retroativos.

4. Mudança de mentalidade

Mais do que alterar o CC na prática, a decisão vem transformando a percepção social sobre a velhice e a capacidade civil. A ideia de que o idoso precisa ser protegido de si mesmo perde força, cedendo espaço a uma concepção de cidadania plena e participativa, que reconhece a maturidade afetiva e jurídica da terceira idade.

Desafios e lacunas

Apesar do avanço, a efetividade da decisão ainda encontra entraves:

Baixa divulgação pública: Muitos cidadãos e até advogados desconhecem a possibilidade de optar por outro regime de bens.

Resistência cultural: Parte das famílias e dos próprios cartórios mantém uma leitura paternalista da norma.

Custos e burocracia: A exigência de escritura pública ou autorização judicial pode limitar o acesso de casais de baixa renda.

Ausência de uniformização jurisprudencial: Tribunais estaduais ainda divergem quanto à aplicação do novo entendimento em uniões estáveis informais.

Além disso, há debates sobre a capacidade civil e o consentimento informado de pessoas idosas, exigindo atenção redobrada de tabeliães e magistrados para evitar fraudes patrimoniais travestidas de liberdade.

Perspectivas futuras

A decisão do STF gerou um movimento legislativo: tramita na Câmara dos Deputados um projeto para atualizar o CC e eliminar expressamente a obrigatoriedade de separação de bens por idade.

Essa convergência entre jurisprudência e legislação tende a consolidar o novo paradigma: a liberdade de escolha como regra, a restrição como exceção.

Nos próximos anos, espera-se:

Ampliação das escrituras declaratórias de regime patrimonial;

Maior integração entre registros civis e tabelionatos;

Revisão de súmulas do STJ sobre efeitos patrimoniais em casamentos de pessoas idosas;

E a consolidação de políticas públicas de orientação jurídica voltadas à terceira idade.

Conclusão

Um ano após o julgamento do STF, é possível afirmar que a mudança jurídica foi mais veloz que a mudança cultural. Ainda que muitos casamentos de idosos mantenham o regime tradicional de separação, a decisão abriu caminho para um novo tempo em que a velhice deixa de ser sinônimo de tutela e passa a ser reconhecida como expressão de liberdade e discernimento.

O desafio agora é transformar essa conquista constitucional em prática cotidiana: simplificar procedimentos, difundir a informação e assegurar que o direito de escolher o regime de bens seja, de fato, exercido por todos, sem preconceitos etários, morais ou patrimoniais.

Fonte: Migalhas