A reforma tributária aprovada por meio da Emenda Constitucional 132/23 teve por escopo reduzir a complexidade da tributação baseada, entre outros princípios, na simplicidade e na neutralidade, buscando, assim, uma maior justiça tributária.
Zarpamos de mares turbulentos, um sistema complexo, com cinco tributos distintos, sem transparência, repletos de cumulatividade e regulados por 5.570 regramentos municipais, 26 regramentos estaduais, 1 regramento distrital e 1 federal, em busca de águas mais calmas, onde nosso país poderá desenvolver-se, gerando crescimento, emprego e renda.
Vendo tal cenário, vem-me à mente as palavras de Camões, em sua epopeia clássica, que narra os feitos dos navegantes portugueses. Definitivamente houve diversos críticos que, apegados ao sistema tributário antigo, logo nas discussões iniciais dessa reforma, já previram o seu fracasso e os males que poderiam dela emergir, rememorando inapelavelmente à figura do “Velho do Restelo”.
Um pouco além na mesma viagem, o canto de Camões que bem denota a aprovação da EC 132/23, seja pelas grandes esperanças de melhoria, seja pela grandiosidade do feito, é aquele que trata da passagem pelo cabo das tormentas, onde os portugueses conseguem escapar das garras do Gigante Adamastor, e seguem seu caminho à grandiosidade.
Essa grandiosidade, porém, corre risco de soçobrar, dando razão aos “Velhos do Restelo”, se não for bem trabalhado o PLP 68/24, recém-apresentado, que regulamenta a instituição do IBS – Imposto sobre Bens e Serviços e a CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços. Será que ao fugir do terrível Gigante e seus mares turbulentos não estamos na verdade sendo atraídos pelo canto de uma sereia?
As sereias, como se sabe, são seres mitólogos que seduzem os marinheiros com seu lindo canto, atraindo-os para rochedos e para perdição, sendo citadas em outra epopeia clássica, a Ilíada de Homero, onde Ulisses, por conselho de Circe, e graças ao trabalho de seus companheiros, que fecharam seus próprios ouvidos com cera e o amarraram no mastro, conseguiu resistir à tentação apresentada pelas sereias e seguir seu caminho rumo a Ítaca.
E aqui, ao analisar o tratamento (ou falta de tratamento) dado aos serviços registrais e notarias pelo PLP 68/24, sinto-me no papel de Circe, ao apontar os perigos existentes por trás do discurso de simplificação e neutralidade trazido na proposta de regulamentação, que pode ser prejudicial para o setor de serviços como um todo, mas principalmente para os tabeliães, notários e registradores, seja na definição da alíquota, da base de cálculo, do local da operação, nos insumos que darão direito à crédito, seja na não cumulatividade do tributo.
Quanto à alíquota, frisamos que o art. 9º, §1º, inciso XIII, da EC 123/23 traz o benefício de redução de 60% das alíquotas referentes aos serviços relacionados à “segurança da informação”, que bem poderia abranger os referidos serviços notariais e registrais. Porém, o PLP 68/24 em momento algum trata dos serviços notariais e registrais, limitando este benefício, em seu livro I, capitulo II, seção XV, apenas a serviços prestados à Administração Pública, restrição essa não prevista no texto constitucional e que acaba por empurrar tais serviço à vala comum, com alíquota cheia.
Essa primeira omissão já demonstra um descaso para com os serviços notariais e registrais, uma vez que estes consistem em verdadeiro serviço de interesse público vazado por norma de hierarquia constitucional (art. 236), cuja materialidade está intimamente relacionada à segurança, veracidade e validade das informações, como aliás reconhecido pela legislação específica.1 Ou seja, o PLP 68/24 deturpa a teleologia do comando constitucional ao não incluir tais serviços no rol daqueles com alíquota reduzida, bem como ao limitá-los apenas às prestações relacionadas à Administração Pública.
No que tange à base de cálculo, o PLP 68/24 desconsidera totalmente o embate judicial entre as chamadas teses da “base limpa” e da “base cheia”.
A primeira defendendo que a incidência dos impostos sobre o consumo deveria recair somente sobre o valor efetivamente pago pela prestação do serviço notarial e registral, ou seja, aquele remetido aos delegatários deste serviço, excluindo as porcentagens destinadas a órgãos públicos, é a que, antes da reforma, foi aplicada e pacificada pelo Poder Judiciário.
A segunda, a qual defendia a incidência sobre o valor total, desconsiderando qualquer exclusão, parece estar presente na proposta legislativa enviada ao Congresso.
A questão não é trivial, e em Estados como São Paulo e Minas Gerais, o valor total repassado pelos delegatários de serviços notariais e registrais chega a quase 40%, havendo Estados, como Bahia, em que o repasse supera 50%.
Ainda pior, existem Estados, como o Paraná, no qual além dos emolumentos previstos em tabela, existe também um percentual a ser recolhido ao Tribunal de Justiça, o qual se guia não pelos emolumentos recebidos pelos delegatários, mas pelo próprio valor do negócio instrumentalizado ou registrado. Nesse caso, muitas vezes o recolhimento ao Tribunal é muito maior do que os emolumentos. Como conciliar com a nova reforma?
Assim, com essa segunda omissão teremos o reavivamento de uma batalha processual que trará insegurança jurídica e aumentará a litigiosidade no país, indo justamente de encontro àquilo que a reforma pretendeu reduzir e evitar.
A terceira omissão se dá quanto ao local de operação, que definirá o sujeito ativo do tributo. A proposta legislativa desconsidera completamente a natureza e a evolução dos serviços notarias e registrais, uma vez que um mesmo serviço pode ter não um, nem dois, mas três locais de ocorrência distintos.
Para os serviços relacionados a bem imóvel e prestados sobre bens imóveis, considera-se o local da ocorrência aquele onde o imóvel está localizado; já para o serviço fruído presencialmente por pessoa física, considera-se o local da ocorrência aquele onde o serviço foi prestado; e, por fim, para os demais serviços considera-se o local principal do domicílio do destinatário.
Ao não tratar especificamente dos serviços notariais e registrais, poderão surgir interpretações diversas sobre qual o local de ocorrência do fato gerador, por exemplo, não estando claro se a lavratura de uma escritura pública seria um serviço relacionado a bem imóvel, e, portanto, ocorreria no local onde o imóvel está localizado, se ocorreria na sede do respectivo tabelionato, caso seja realizada presencialmente, ou mesmo no domicílio do tomador, caso seja prestada de forma remota.
Essa situação se torna ainda mais dramática para os notários, os quais não têm sua competência vinculada a um âmbito territorial restrito, podendo, a rigor, praticar atos referentes a negócios de qualquer lugar do país, o que, somada à discussão sobre a incidência “em base cheia”, pode levar a um verdadeiro caos quanto às diversas hipóteses de recolhimento.
Essa imprecisão gerará uma forte insegurança jurídica, bem como demandará um trabalho administrativo e burocrático maior por parte do delegatário dos serviços notariais e registrais, pois o local de ocorrência definirá qual alíquota estadual e municipal do IBS incidirá sobre o serviço, o que em caso de erro poderá gerar recolhimento a maior ou a menor.
Ainda, cabe ressaltar que a forma como proposta a legislação regulatória, acaba por ir de encontro à proposta de neutralidade, quando coloca serviços prestados por profissionais liberais dentro de cláusulas de redução, sem o mesmo tratamento aos notários. É que, diferente das especialidades registrais, que não encontram substituto à mercado, as atividades notariais muitas vezes concorrem com as advocatícias – como por exemplo, nos casos de forma pública facultativa – o que, somado ao tema dos repasses já tratado, faria com que o sistema tributário empurrasse o cidadão para o serviço do advogado, simplesmente pelo seu menor preço total – em decorrência do tratamento benévolo -, e não por sua qualidade ou eficiência. Trata-se justamente daquilo que supostamente a reforma visava evitar.
Por último, quando trocamos um imposto cumulativo sobre o consumo (ISS) por um não cumulativo (IBS e CBS), temos um choque, uma vez que a alíquota máxima do primeiro era limitada a 5% enquanto a do segundo pode ultrapassar os 26,5%, Essa situação, porém, seria aliviada pela existência de possíveis créditos do imposto pago na aquisição de insumos e nas operações anteriores, o que em diversos casos, inclusive, reduziria a carga tributária, tornando-a não cumulativa.
Porém, esse não é o caso dos serviços notariais e registrais, uma vez que o principal componente do custo deste é o salário de seus empregados, que por sua vez têm registro formal em carteira de trabalho, o que não gera nenhum crédito tributário para o delegatário, e pode inclusive ferir o princípio da neutralidade, consagrado no texto constitucional, pois irá beneficiar aquele que possui uma folha salarial mais enxuta, ou mesmo, empurrar os notários e registradores à terceirização de sua mão de obra e eventual pejotização de seus empregados.
Dessa forma, o que começou como uma epopeia com grandes esperanças e expectativas pode transformar-se em um triste drama ou até num sangrento thriller, prejudicando um setor que gera empregos formais, possui preços tabelados, demonstra transparência ao publicar os valores destinados ao delegatário, ao Fisco e às demais entidades, e possui um papel essencial para a segurança jurídica, Estado de Direito e a realização de sonhos, como a aquisição da casa própria.
Assim, termino esse artigo com um conselho diferente daquele dado por Circe a Ulisses: Não é tempo de tapar os ouvidos com cera, e ser amarrado ao mastro do navio, mas, sim, de agir para que a reforma preconizada pela Constituição, que prometeu um efetivo ganho para todo o país, não encontre, por vias de sua regulação infraconstitucional, o triste fim profetizado pelos “Velhos do Restelo”.
Fonte: Migalhas
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