Historicamente, o direito de livre acesso é um dos mais relevantes para garantir a autodeterminação informativa dos titulares de dados. Isso porque o primeiro passo para exercer o controle sobre seus dados é saber quais deles são tratados.
No Brasil, essa relevância é percebida no texto legal. O livre acesso não é apenas um dos direitos elencados no artigo 18 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), mas foi alçado ao nível de princípio (artigo 6º, IV).
Pelo texto legal, o livre acesso é a garantia de “consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais” (artigo 6º, IV, LGPD). Embora esse direito também incida em face das serventias extrajudiciais (ou “cartórios”), há limitações à sua extensão.
Categorias de dados tratados pelos cartórios
Em sua atividade notarial e registral, os cartórios precisam conciliar princípios conflitantes, tais como a autodeterminação informativa, a publicidade notarial e registral e o sigilo de investigações de inteligência financeira.
Diante dessas particularidades, a LGPD é a aplicada com base e no Provimento nº 149/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que institui o Código Nacional de Normas para o extrajudicial. Neste diploma, constata-se a existência de três grandes grupos de dados pessoais tratados pelos cartórios:
1 – Dados pessoais constantes nos sistemas administrativos da serventia;
2 – Dados pessoais constantes dos acervos notariais e registrais;
3 – Dados pessoais coletados para colaboração com o Sistema de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo e da Proliferação de Armas de Destruição em Massa (PLD/FTP).
O exercício do direito de livre acesso existe apenas em relação ao primeiro grupo, conforme se demostrará a seguir.
Limites ao direito de acesso
Com relação aos dados constantes em sistemas administrativos, a gratuidade do livre acesso está assegurada, nos termos do artigo 98 do CNN:
Art. 98: A gratuidade do livre acesso dos titulares de dados (art. 6º, IV, da LGPD) será restrita aos dados pessoais constantes nos sistemas administrativos da serventia, não abrangendo os dados próprios do acervo registral e não podendo, em qualquer hipótese, alcançar ou implicar a prática de atos inerentes à prestação dos serviços notariais e registrais dotados de fé-pública.
Para que o leitor não familiarizado com a prática dos cartórios, é preciso ressaltar que, hoje em dia, todos contam com sistemas administrativos para apoio nas atividades cotidianas.
Tais softwares podem variar conforme a empresa fornecedora, mas todos incluem funções básicas como abertura de protocolos, encaminhamento interno de demandas, registro das atividades realizadas, dentre outras.
Esses sistemas armazenam cadastros das partes constantes nos documentos lavrados/registrados pelo cartório, o que inclui os dados de qualificação previstos no artigo 2º do Provimento 61/2017 do CNJ [1] e outras informações pertinentes. Os titulares têm acesso apenas a essas informações.
Com relação aos dados próprios do acervo registral, o acesso é franqueado por meio dos instrumentos de publicidade típicos da atividade notarial e registral — certidões e buscas (ou pesquisas) — para os quais existe a cobrança de emolumentos.
Direito de acesso x fé pública
A marca da atividade notarial e registral é a fé pública inerente aos documentos emitidos pelos cartórios. Essa característica não é impingida aos documentos emitidos com base no direito de livre acesso. Segundo o §1º do artigo 98 do CNN, tais documentos deverão exibir em seu cabeçalho o seguinte texto:
Este não é um documento dotado de fé pública, não se confunde com atos inerentes à prestação do serviço notarial e registral nem substitui quaisquer certidões, destinando-se exclusivamente a atender aos direitos do titular solicitante quanto ao acesso a seus dados pessoais.
Por meio do direito gratuito de acesso, o solicitante poderá tomar ciência das informações pertinentes à sua condição como titular de dados, tais como a relação dos dados tratados, a descrição e a finalidade do tratamento, a base legal aplicável, a relação de destinatários com quem há compartilhamento, etc.
Mas se o solicitante desejar informações para uso econômico e/ou comprovação de fatos, precisará se valer dos instrumentos normais de acesso aos dados dos cartórios: busca (ou pesquisa) e certidões. Para tanto, deverá pagar os emolumentos devidos.
Exemplo prático
Para que fique mais claro ao leitor, vamos imaginar um caso fictício. Felisberto da Silva Sauro possui uma série de propriedades imobiliárias registradas no 1º Ofício de Registro Imóveis de Bruzundanga.
O quadro abaixo mostra (de forma didática e resumida) o tipo de informações que ele poderá obter com base no direito de acesso:
O 1º Ofício de Registro Imóveis de Bruzundana mantém em seu sistema cadastro com os seguintes dados:
Nome complete: Felisberto da Silva
Número do CPF: 111.222.333-44
Nacionalidade: brasileiro
Estado civil: solteiro
Existência de união estável
Filiação: filho de Maria Silva e Bruno Sauro
Profissão: agrônomo
Domicílio residencial: Rua de Ladrilhos, 222, bairro Jardim Feliz, CEP 11.222-333
Endereço eletrônico: felisbertosilvasauro@gmail.com
Esses dados foram extraídos da qualificação dos documentos pessoais e títulos apresentados. O tratamento é realizado para viabilizar a prestação da atividade registral, com base na legislação.
As informações são compartilhadas com os seguintes destinatários: centrais, órgãos públicos, fornecedores, etc.
Além disso, com base no seu consentimento, coletamos uma fotografia de sua visita ao cartório em 2023. A imagem foi publicada em 23/11/2023 e consta até hoje no Instagram @1ribruzundanga.
As informações acima efetivam a autodeterminação informativa do senhor Felisberto. Primeiramente, ele tem conhecimento sobre a extensão do tratamento de dados realizado pelo cartório. Com base nisso, pode pedir outros direitos que lhe são peculiares, como a correção ou atualização de dados incorretos, ou revogação do consentimento (no caso da fotografia).
Todavia, caso o senhor Felisberto deseje saber o número das matrículas dos imóveis, quem são os proprietários confrontantes, a cadeira filiatória, os gravames, e outros tipos de informação pertinentes à situação jurídica de seu patrimônio, deverá solicitar a emissão de buscas ou certidões; e pagar os emolumentos pertinentes.
Dados para fins PLD/FTP
Diferente é o caso dos dados pessoais coletados para fins PLD/FTP. Com efeito, os cartórios devem coletar informações que revelem indícios da prática de crime de lavagem de dinheiro e atos correlatos. Em algumas situações, precisam comunicar as operações suspeitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
A questão determinante aqui não é a gratuidade do acesso, mas a exigência de sigilo sobre os dados tratados. Na forma do art. 154 do Código Nacional de Normas:
Art. 154. Notários, registradores e oficiais de cumprimento devem guardar sigilo acerca das comunicações previstas nesta Seção, inclusive em relação a pessoas a que elas possam fazer referência, sendo vedado o compartilhamento de informação com as partes envolvidas ou terceiros, com exceção da Corregedoria Nacional de Justiça ou, na forma por ela autorizada, de órgãos ou integrantes de Corregedoria-Geral de Justiça estadual ou do Distrito Federal.
Note-se que o sigilo diz respeito não apenas a terceiros, mas aos próprios titulares de dados. Ele é importante para viabilizar as investigações. Afinal, caso os criminosos tenham ciência de que suas operações foram comunicadas ao COAF e estão sendo investigadas, podem obstruir a persecução criminal.
Além disso, o sigilo protege o titular da serventia e de seus colaboradores de retaliações por parte de grupos criminosos.
Diante de dados pessoais de comunicação obrigatória à UIF, não há que se cogitar de acesso por terceiros, muito menos de acesso gratuito. Trata-se de uma exceção ao princípio da transparência, justificada por razões de interesse público e da eficiência da persecução criminal, conforme prevê o artigo 79, §2º do Código Nacional de Normas.
Conclusão
Em face dos cartórios, o direito de livre acesso gratuito não alcança a integralidade dos dados tratados, mas somente aqueles constantes nos sistemas administrativos.
Nos demais casos, não subsistirá referido direito, seja pela necessidade de utilizar instrumentos pertinentes de busca e certidão (com pagamento de emolumentos), seja pela imposição de sigilo dos dados.
Fonte: Conjur
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