UM NOTÁRIO E UM DOS MILAGRES MAIS SOLIDAMENTE PROVADOS NA HISTÓRIA
Des. Ricardo Dip
O conhecido jornalista e escritor italiano Vittorio Messori –autor de mais de uma vintena de livros e cujos artigos se publicaram em La Stampa, Corriere della Sera e Avvenire– foi certa vez desde Bréscia, na região lombarda, atravessando a Provence, até chegar ao território em que nasce o rio Tejo (em verdade, ali nasce o Tajo, que, ao acessar Portugal, vira o Tejo), na província de Teruel, onde aportou em Calanda, pequena cidade espanhola na qual hoje parece viverem menos de quatro mil almas. E que fez Messori, um tão importante escritor, deixar a belíssima região do Lago di Garda e meter-se nesse percurso de 1.365 quilômetros vencido ao longo de dois dias? Lá estava ele em busca de uma confirmação, de uma prova objetiva do fato que se designou, em castelhano, el Gran Milagro –el Milagro de los milagros–, ou, dirá Messori, il Miracolo per eccelenza.
Miguel Juan Pellicer nascera em Calanda, no ano de 1617, e quando tinha seus 19 ou 20 anos (eram os fins de 1636 ou princípios de 1637), foi trabalhar no campo, prestando serviços a um tio materno (Jaime Blasco), dando-se o caso de que, em julho de 1637, caiu do dorso de um animal que puxava uma carroça agrícola, e uma das rodas do veículo passou-lhe sobre a perna direita, um pouco abaixo do joelho, causando-lhe fratura na parte central da tíbia. Levado ao Hospital Real de Valencia (distante cerca de 60 quilômetros do local em que se dera o acidente), foi ali diagnosticada –e documentada– a fratura, mas o tratamento que lhe foi dispensado não teve êxito. Decidiu-se Miguel a buscar, então, auxílio no famoso Real y General Hospital de Nuestra Señora de Gracia, em Zaragoza, vencendo 300 quilômetros ao largo de 50 dias de caminhada. Nesse hospital, descobriram-se uma avançada gangrena e a inutilidade dos remédios aplicados, concluindo-se que o único modo de salvar a vida de Miguel Pellicer estava em amputar-lhe a perna. Sob a chefia do cirurgião Juan de Estanga, e com a participação de dois outros médicos, Diego Millaruelo e Miguel Beltrán, procedeu-se, na metade de outubro de 1637, à amputação da perna direita do jovem paciente, “quatro dedos abaixo do joelho”.
A parte amputada da perna de Miguel Pellicer, recolhida por Juan Lorenzo García, um moço praticante que assistira os cirurgiões, foi levada ao cemitério do hospital e ali enterrada “em um buraco com a profundidade de um palmo”. Esse buraco, cerca de dois anos e meio mais tarde, será encontrado vazio.
Depois de alguns meses de convalescença, Miguel, na primavera espanhola de 1638, provido de muletas, passou a mendigar na porta da capela de Nuestra Señora de la Esperanza, no Santuário do Pilar, em Zaragoza, para o que teve de munir-se de autorização do Capítulo dos Canônicos dessa Igreja. Ali permanecerá, esmolando publicamente, até março de 1640, quando, após viajar por 118 quilômetros, regressa a sua casa em Calanda, onde também se hospedava ocasionalmente um soldado (era o tempo da Guerra dos Trinta Anos, e competia aos tabeliães espanhóis designar as casas em que os militares deveriam alojar-se; isso, em Calanda, era atribuição do notário do lugar, Lázaro Macario Gómez). Era então o dia 29 de março de 1640: a imprevista hospedagem desse soldado forçou Miguel Pellicer a trasladar-se para o quarto dos pais, onde se acomodou num leito improvisado no chão do pequeno aposento. Por volta de entre as dez e meia e as onze da noite, a mãe de Miguel, María Blasco Pellicer, indo recolher-se também ao quarto, vê, surpresa, que, fora da coberta demasiado curta, dois pés cruzados se mostravam; opinou tratar-se de um equívoco: o soldado, pensou ela, é que por erro se dirigira ao leito reservado para Miguel. María, então, chamou o marido, e este, ao levantar a coberta, descobriu que ali estava Miguel Juan com os pés cruzados.
Não é preciso muito esforço para imaginar o quanto de alvoroço não gerou esse fato não só na pequena cidade de Calanda, mas em seus arredores, de onde proveio, já na manhã de 30 de março de 1640, o notário real Miguel Andréu, de Mazaleón, que passou logo a ouvir duas dezenas e tanto de testemunhas, expedindo, ao fim, um documento público, lançado em livro de protocolo (Protocolo Andréu 1640), instrumento cujo título, aposto pelo mesmo tabelião, foi este: Acto público milagro que se hizo en Calanda. Esse protocolo, com o ato público relativo ao caso Miguel Pellicer, salvaguardou-se, proividencialmente, durante a Guerra Civil espanhola de 1936-1939, do vandalismo de anarquistas, socialistas e comunistas (a expressão, em italiano, furia vandalica foi usada por Messori), e adiante foi ter às mãos do alcaide de Zaragoza, vindo a público em 1972, exibindo-se na sede da Administração municipal zaragozense.
E foi esse magistrado da paz jurídica, o notário Miguel Andréu –dotado de fé pública em nome do Rei e do Governo de toda a Espanha– quem, já documentados muitos testemunhos do fato prodigioso, ouviu ainda um magistrado da jurisdição contenciosa, o juiz de Calanda, Martín Corellano, que afirmou, com juramento, ser o mesmo jovem (Miguel Juan Pellicer) que via então provido das duas pernas quem ele havia conhecido tendo uma só perna.
Não se pouparam mais investigações, tamanho o caráter extraordinário dos fatos. Instaurou-se um processo: ouviram-se o médico Juan de Estanga (o que liderara a amputação da perna de Miguel Juan), o prático García (que enterrara a porção amputada), enfermeiros, familiares, vizinhos da casa de Miguel, quatro autoridades civis de Calanda, quatro autoridades eclesiásticas e várias pessoas que testemunharam sobre a mendicância de Miguel Pellicer junto ao Santuário de Zaragoza. Não faltou mesmo que se buscasse, em vão, a perna amputada na pequena cova do cemitério do Hospital Nuestra Señora de la Esperanza, e, mais ainda, que se afastasse a hipótese de que Miguel Juan tivesse um irmão gêmeo –hipótese que o livro de registro de batismos afastou.
E, enfim, parece ter razão Vittorio Messori ao dizer, em seu livro Il Miracolo (Milão: SuperburSaggi, 2000) –e foi de suas letras que se nutriram estas pequenas nossas notas–, tratar-se, no caso de Miguel Juan Pellicer, de um dos mistérios mais solidamente confirmados da história. Se assim o foi, em muito, em muitíssimo isso se tributa à atuação notarial, pessoal e imediata, com a presteza e a segurança que se permitem com a atividade dos bons tabeliães de aldeia.
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