O NOTÁRIO E O SIGILO PROFISSIONAL
(última parte)
Talvez nos bastem umas poucas indagações para com suas respostas compreendermos a relevância de observar-se o segredo profissional, incluído o que se impõe ao notário: seria possível a convivência política se não houvesse o dever desse segredo? Os enfermos de doenças tidas por vergonhosas procurariam os médicos que as pudessem divulgar? Buscar-se-ia o auxílio de advogados quando as causas envolvessem situações menos dignas? Os clientes visitariam os notários se a estes se facultasse a livre propalação de sua privacidade? (Cf., a propósito, brevitatis causa, os comentários –item 184– de Nelson Hungria ao art. 154 do Código penal brasileiro).
Caberia acrescentar, em continuidade, uma outra pergunta: é razoável impor-se a obrigação de violar o segredo profissional, o segredo notarial? Ou por outra: o só fato de dispensar-se da obrigação de guarda do segredo notarial implica ou justifica a obrigação de noticiar o segredo –por exemplo, às autoridades estatais–ou a obrigação de testemunhá-lo em processo judicial ou administrativo?
O vigente Código penal brasileiro, em seu art. 325, diz ser crime “revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem” (e, averbe-se, o art. 327 do mesmo Código inclui o notário, para os fins penais, na compreensão do conceito de “funcionário público”). Por sua vez, nosso Código de processo penal prevê serem “proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho” (art. 207). Não diversamente, o Código de processo civil nacional dispensa da obrigação testemunhal sobre fatos “a cujo respeito, por estado ou profissão, deva [a testemunha] guardar sigilo” (inc. II do art. 448), além de, no art. 404, admitir a escusa da exibição de documento que possa “acarretar a divulgação de fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam [as partes ou as testemunhas] guardar segredo” (inc. IV).
Claro está que não há impedimento a que o notário, tanto seja, no exercício profissional, vítima de um delito, possa noticiá-lo à autoridade estatal, sequer se nega a faculdade de objeção da consciência, para recusar a prática de ato notarial quando o tabelião não tenha confiança em seu cliente.
Objetar-se-á, talvez, na sequência, que, havendo, em determinado quadro, lei isentiva do dever de sigilo notarial ou até mesmo compulsiva da obrigação de, em dadas situações, não se manter esse sigilo, caem por terra as previsões substantivas e processuais que resguardariam o segredo próprio do notário.
E isto é de admitir no plano estrito do direito posto, mas talvez seja então muito oportuno meditar sobre dois temas: primeiro, o de saber se a negativa do dever de observar o segredo commissum (ou seja, do secretum encomendado, confiado, estrito, privado) é compatível com a relação de fidúcia que é da essência do liame entre o notário e o cliente.
Segundo tema: a existência de um dever legal de noticiar crime –ou até de mera suspeita de crime– de que se toma conhecimento no exercício da função notarial é compatível com a tipologia do notariado latino? Ou, diversamente, acarreta o surgimento de um novo tipo de notariado, aquele que já não alberga jurisprudentes nos quais depositam confiança os clientes, mas profissionais convocados à tarefa de auxiliar as atividades policiais do estado?
Meditemos.
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