Notas sobre as Notas

Notas sobre as notas (n.39)

Publicado em 18/03/2020

O NOTÁRIO E O SIGILO PROFISSIONAL          

(primeira parte: Confiança e confidência) 

Chateaubriand, numa das belíssimas páginas de Génie du christianisme, deixou escrito que os homens têm propensão para os mistérios –a “admiração pelo mistério das coisas” (Gustavo Corção), “a atração pelo numen das coisas” (Afonso Botelho)–, e desta inclinação vem o fato de terem as religiões de todos os povos seus segredos impenetráveis e bem reservados. O mesmo Gustavo Corção, em Três alqueires e uma vaca, que a perda do senso de mistério leva a que o inferno se antecipe, tamanha a relevância do misterioso –e do segredo– para a vida de cada homem e de cada povo.

Mas, num tempo no qual a realidade do Big Brother, escapando das meras letras do 1984 de Orwell e, talvez por sua inclusão no âmbito do show business, tem ferido de morte o direito à privacidade, o direito ao segredo, é interessante observar que o sigilo  profissional, sendo embora um tema afeto à generalidade das profissões (cf. Todolí), ainda apresenta particular relevo no exercício da função notarial, maxime do notariado latino.

A relação jurídico-notarial é um liame que se estabelece entre o notário e seus clientes. Atenda-se à relevância desta designação –clientes– que se remete ao sentido originário do vocábulo, é dizer, ao substantivo latino cliens, clientis, que significa pessoa relacionada à de um protetor ou patrono; alguém que está sob a proteção de outrem (cf. Ernout-Meillet, Roberts-Pastor, Torrinha, Saraiva). Nas Etimologias de S.Isidor, indica-se que, antes, clientes (nominativo plural de cliens) diziam-se colientes, porque “honravam seus patronos”; com efeito, o verbo colo (infinitivo colere) tem, entre outras, a acepção de honrar, venerar, respeitar, e, não menos, de tratar de, cuidar de, proteger.

Esta proteção ou patronato assenta-se num laço de confiança, e Rufino Larraud disse agudamente que que a própria natureza da função notarial revela a necessidade das condições objetivas para proteger “la intimidad de quien se confía”.

De um lado, o cliente, ao eleger com liberdade o notário, nele põe confiança, e, de outro lado, o notário –resguardadas as ressalvas próprias da objeção de sua consciência–, ante o dever de aceitar a prestação contratada, assegura ao cliente sua fidelidade e discrição. A confiança (em latim: fiducia, æ) é algo que deriva da crença em alguém ou em alguma coisa –alicuid et alicui credere (S.th., II-II, 129, 6); é “a esperança que dá crédito às palavras de outro que lhe promete sua ajuda” (S.Tomás).

Já nas Siete Partidas de Dom Alfonso X, o Rei Sábio, lia-se devesse o notário guardar gran poridad, buena poridad (P. 2, t. 9, 24 e 25); poridad, nos textos do direito clássico hispânico, é o mesmo que segredo (vidē Fernández Casado, González Palomino, Giménez-Arnau), e, nas Partidas, a lealdade do notário vem indicada não como um dever funcional –seja estritamente jurídico, seja de ética profissional–, mas, isto sim, como uma qualidade pessoal do notário, a qualidade de ser pessoa de poridad –pessoa que mantém o segredo, que honra o segredo (cf. Honorio Romero Herrero).

Alvarez Robles, por sua vez, acerca as ideias de segredo e verdade, sustentando que são ambas “condições tão fundamentais da profissão notarial que a elas cabe sacrificar tudo (…) O segredo tem para nós o caráter de princípio de ordem pública, in specie” (apud Giménez-Arnau).

Bem pontualiza Pedro Ávila que os clientes, desejando

“mantener ocultos bien en hecho del otorgamiento del instrumento, bien el contenido de éste, bien los antecedentes que han de revelarse al Notario para el asesoramiento o redacción a él encomendados, no solicitarán la intervención notarial si no confían de antemano en la discreción del Notario” (o destaque não é do original).          

 E remata: “Para inspirar esa confianza (y que la institución notarial pueda llenar sus fines) es para lo que se impone al Notario el deber de guardar el secreto profesional”.