Notícias

Dispensa da escritura pública é retrocesso institucional e social

Publicado em 25/11/2025

•              Janaina Môcho

Em 27 de novembro de 2024, o corregedor Nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, deferiu medida liminar para suspender os efeitos dos Provimentos nº 172 e 175 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). A decisão acolheu provisoriamente os argumentos apresentados pela União acerca de supostos impactos econômicos e alegadas desvantagens competitivas entre a escritura pública e outras soluções apresentadas por agentes do mercado.

A controvérsia central envolve a interpretação do alcance do artigo 38 da Lei nº 9.514/1997, que estabelece a possibilidade de celebração dos atos e contratos nela referidos “por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública”. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio dos provimentos suspensos, havia estabelecido interpretação sistemática que vinculava essa faculdade às entidades integrantes do Sistema Financeiro Imobiliário e sistemas correlatos.

O Ministério da Fazenda acolheu argumentos de entidades do setor imobiliário, que sustentam interpretação diversa, argumentando pela ampla utilização do instrumento particular como forma de redução de custos de transação, e solicitou à Advocacia Geral da União (AGU) a realização do pedido acolhido provisoriamente pelo CNJ.

A suspensão da exigência de escritura pública para negócios imobiliários realizados fora do Sistema Financeiro Imobiliário e do Sistema Financeiro da Habitação representa um retrocesso institucional e social e mina uma das engrenagens que sustentam a segurança jurídica e econômica do país. O argumento da redução de custos ou da suposta agilidade das transações por instrumento particular desconsidera o papel sistêmico do notariado, essencial à confiança coletiva, à prevenção de litígios e ao desenvolvimento seguro do mercado imobiliário.

Importância da mediação notarial

A escritura pública não deve ser encarada como mera formalidade, mas como infraestrutura que garante clareza, autenticidade, publicidade e legalidade às transações. O tabelião, investido de fé pública, atua como mediador técnico e imparcial entre as partes, conferindo proteção jurídica ao negócio, o que reduz drasticamente o risco de fraudes, simulações e conflitos posteriores. No contexto brasileiro, marcado por desigualdades e assimetrias informacionais, a mediação notarial também representa uma barreira contra práticas predatórias e garante, inclusive, a defesa dos mais vulneráveis.

Quando se dispensa o controle prévio, transfere-se ao Judiciário a resolução dos conflitos decorrentes de documentos particulares, que podem trazer vícios ou cláusulas ambíguas. O preço da celeridade aparente termina por ser cobrado em ineficiência, oneração processual e queda da confiança no sistema de transações imobiliárias.

O modelo brasileiro, inspirado na tradição romano-germânica, consagrou a atividade notarial como serviço técnico e de interesse público. O papel público do tabelião vai além da chancela documental: ele orienta, esclarece, interpreta a vontade das partes e assegura que todos os requisitos legais estejam presentes, para promover isonomia e reduzir as chances de litigiosidade.

Custos da dispensa

A flexibilização da regra, além de comprometer a equidade e a coletividade, prejudica o ambiente negocial como um todo. Quando se dispensa a formalização por escritura pública, transfere-se para os agentes econômicos privados, nem sempre preparados ou imparciais, a tarefa do controle jurídico, da verificação de documentos e da elaboração dos contratos. Isso acarreta o aumento do risco sistêmico, fomenta a multiplicação de demandas judiciais e encarece, no médio prazo, o valor das transações pela insegurança e pelos litígios posteriores. Os custos invisíveis – sociais, institucionais e judiciais —, superam amplamente o que se economizaria dispensando o expediente do notariado.

Em vez de promover a eliminação pura e simples da escritura pública, uma alternativa mais equilibrada e juridicamente responsável consistiria na adoção de modelos híbridos que preservem o controle público e a segurança jurídica, ao mesmo tempo em que incorporem inovações tecnológicas para aprimorar a eficiência do sistema notarial. A ampliação de mecanismos digitais supervisionados, como escrituras eletrônicas com autenticação via certificado digital ICP-Brasil, uso de blockchain para registro de atos notariais, integração de plataformas cartorárias com sistemas públicos e privados, poderia representar um avanço significativo, sem comprometer os princípios de publicidade, autenticidade e prevenção de litígios que sustentam o instituto da escritura pública. Tais soluções mitigadas permitiriam a modernização do serviço sem ceder à lógica da desregulamentação, promovendo uma desburocratização segura e compatível com a função social do Direito Notarial.

Respaldo na Constituição

A vinculação do instrumento notarial ao interesse público é reconhecida como elemento fundamental para a promoção da segurança jurídica nas transações imobiliárias. Num cenário de constantes inovações e busca por maior eficiência, é importante que eventuais mudanças preservem a confiança que sustenta o mercado. A escritura pública, ao oferecer um controle técnico e imparcial, continua a ser um instrumento acessível e relevante, especialmente para os pequenos proprietários e para a economia popular, ao assegurar clareza, legalidade e proteção jurídica nas relações contratuais. Por isso, qualquer processo de modernização deve buscar soluções que conciliem a simplificação procedimental com a manutenção das garantias essenciais ao pleno exercício dos direitos patrimoniais.

A valorização da escritura pública também encontra respaldo na Constituição, que consagra princípios diretamente relacionados à segurança jurídica e à proteção das partes nas relações patrimoniais. O artigo 5º, incisos XXII e XXXII, assegura o direito à propriedade e a defesa do consumidor, reforçando a necessidade de instrumentos que promovam equilíbrio e proteção nas transações imobiliárias, especialmente diante de eventuais assimetrias informacionais.

Já o artigo 170, incisos V e VIII, ao tratar da ordem econômica, enfatiza a função social da propriedade e a busca do pleno emprego, valores que dialogam com a atuação do notariado como elemento de prevenção de litígios e de fortalecimento da confiança no ambiente negocial. Assim, a formalização por escritura pública não representa mera exigência procedimental, mas um mecanismo de efetivação de direitos e garantias constitucionais fundamentais.

Por tudo isso, em vez de retroceder ao permitir soluções negociais frágeis e individualizadas, é preciso reafirmar, valorizar e aprimorar a atuação pública do sistema notarial. O modelo brasileiro está longe de ser mera burocracia cartorial; ele é instrumento democrático de justiça, inclusão social e estímulo ao desenvolvimento econômico sustentável. Segurança, transparência, equilíbrio e eficiência são conquistas que não podem ser sacrificadas em nome de interpretações apressadas e de benefícios transitórios para alguns setores.

Fonte: Conjur