A Constituição de 1988 consagrou o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental de todos e dever do poder público e da coletividade, determinando que a criação de espaços territoriais especialmente protegidos é uma forma de dar efetividade a isso. Nessa linha, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) estruturou um conjunto de categorias de áreas protegidas com diferentes graus de restrição ao uso dos recursos naturais, mas a mera instituição formal das unidades não tem sido suficiente para assegurar a tutela material da biodiversidade.
No caso das UCs federais cujo regime é de domínio público, a efetividade da proteção depende da resolução do passivo fundiário, com a desapropriação dos imóveis privados situados em seus limites e a consequente consolidação da titularidade em favor da União. É justamente nesse ponto que ganha relevância a compensação ambiental prevista no artigo 36 da Lei 9.985/2000, concebida como obrigação imposta a empreendimentos de significativo impacto ambiental para apoiar a implantação e a gestão de UCs, especialmente as de proteção integral.
O Snuc estruturou as categorias de UCs a partir de dois grandes grupos. proteção integral e uso sustentável, disciplinando tanto a finalidade ambiental como o regime fundiário aplicável. Do ponto de vista da dominialidade, há três situações principais: 1) unidades em que se exige domínio público da integralidade da área, como as estações ecológicas, reservas biológicas, parques nacionais, reservas extrativistas e florestas nacionais; 2) unidades que admitem coexistência de propriedades públicas e privadas, mas com possibilidade de desapropriação das áreas privadas, como os monumentos naturais e os refúgios de vida silvestre; e 3) unidades em que a propriedade privada pode permanecer, sem necessidade de desapropriação, desde que respeitados as condicionantes ambientais impostos pela legislação e pelo plano de manejo.
Isso significa que não há uma lógica rigorosamente uniforme na associação entre categoria e regime fundiário, pois há unidades de uso sustentável com exigência de domínio público e unidades de proteção integral que toleram a existência de imóveis privados no seu interior. Ainda assim, parte expressiva da doutrina reconhece que o desenho fundiário influencia diretamente a concretização dos objetivos de cada categoria, o que implica afirmar que, nas de domínio público obrigatório, a permanência indefinida de propriedades privadas fragiliza a efetividade do regime protetivo.
Nas UCs de domínio público, o regime jurídico estabelecido pelo Snuc pressupõe que, em algum momento, a titularidade dos imóveis inseridos em seus limites seja unificada em favor do poder público. Enquanto isso não ocorre, prevalece uma situação híbrida: os particulares continuam formalmente proprietários, mas submetidos a restrições ambientais mais severas, ao tempo em que a administração pública não consegue exercer plenamente a gestão da área, o que termina favorecendo a ocorrência de atividades incompatíveis com os objetivos da unidade.
A Instrução Normativa nº 4/2020 estabeleceu procedimentos técnicos e administrativos para a indenização de benfeitorias e a desapropriação de imóveis rurais localizados no interior de UCs federais de posse e domínio públicos. Cabe ao ICMBio fazer um levantamento fundiário da área, identificando proprietários privados, bem como áreas de titularidade pública, assim como terras devolutas. Nesse levantamento, deve a autarquia verificar a natureza das posses, se de boa-fé ou má-fé, e adotar as medidas cabíveis, indenizando os posseiros de boa-fé e procedendo à desintrusão dos de má-fé.
É nesse contexto que se fala em desapropriação ambiental, entendida como a utilização da desapropriação para viabilizar a implementação de áreas ambientalmente protegidas, em consonância com a função socioambiental da propriedade. Quando a legislação exige que determinada área seja de domínio público para assegurar fins ecológicos relevantes, a desapropriação deixa de ser mera faculdade administrativa e se torna uma obrigação decorrente do próprio Texto Constitucional.
A compensação ambiental do Snuc decorre do artigo 36 da Lei 9.985/2000, que impõe aos empreendimentos causadores de significativo impacto ambiental a obrigação de contribuir com recursos financeiros para a implantação e manutenção de UCs de proteção integral. O Decreto 4.340/2002 detalhou os contornos desse instituto, estabelecendo critérios para cálculo, definição de beneficiárias, priorização e execução dos valores compensatórios.
Compensação ambiental
No julgamento da ADI 3.378, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da compensação ambiental, afastando a tese de que se trataria de tributo camuflado, e reconhecendo sua vinculação ao licenciamento ambiental de atividades significativamente poluidoras e ao princípio do poluidor-pagador. A partir daí consolidou-se o entendimento de que a compensação ambiental tem natureza jurídico-financeira própria, inserida no âmbito do poder de polícia ambiental, com destinação vinculada às UCs.
Entre as destinações possíveis dos recursos dessa modalidade de compensação ambiental, figura com destaque a regularização fundiária, ao lado de ações de criação, ampliação, consolidação e gestão dessas áreas. Essa diretriz evidencia a pertinência de utilizar tais recursos para desapropriar imóveis privados localizados em unidades de domínio público, aproximando o instituto da compensação da agenda de consolidação territorial do Snuc.
No âmbito federal, os recursos de compensação ambiental são geridos em modelo que envolve instituição financeira e o ICMBio, com previsão de que a própria instituição contratada possa conduzir desapropriações dos imóveis indicados pelo órgão ambiental, nos termos do artigo 14-A da Lei nº 11.516/2007, desde que vinculados às UCs beneficiárias. O desenho normativo atual, portanto, não apenas permite, como estimula, a utilização da compensação para a aquisição de áreas privadas situadas em unidades de domínio público.
A existência de um passivo fundiário expressivo em diversas UCs, combinada com a disponibilidade de recursos de compensação ambiental, exatamente como se dá em âmbito federal, torna difícil sustentar que a ausência de desapropriações decorre exclusivamente de limitações financeiras. A rigor, o problema se mostra mais ligado à falta de planejamento, à baixa priorização da regularização fundiária e aos gargalos administrativos do que à inexistência de mecanismos jurídico-financeiros aptos a viabilizar a consolidação do domínio público.
Transição
Enquanto não ocorre a desapropriação, consolidou-se, na prática, o chamado regime de transição, por meio do qual os proprietários privados permanecem nos imóveis inseridos em UCs de domínio público, submetidos a restrições ambientais e a um conjunto de condicionantes definidas pelos órgãos ambientais e pelo Ministério Público. Em sua origem, esse regime foi concebido como solução transitória, voltada a evitar conflitos mais agudos e a permitir um certo grau de ordenamento de atividades até que a indenização fosse efetivamente realizada.
O problema é que, passados 25 anos da edição do Snuc, esse regime de transição está se tornando permanente em muitas unidades, o que gera um quadro de dissociação entre a categoria formal e a realidade fundiária e socioeconômica do território. Na prática, isso contribui para a formação dos chamados “parques de papel”, situação em que o reconhecimento legal não se traduz em proteção efetiva, seja pela presença contínua de atividades incompatíveis com a finalidade da unidade, seja pela falta de condições para a implantação de estruturas de gestão e fiscalização adequadas.
A análise da situação dos proprietários privados em UCs deve ser feita à luz da função socioambiental da propriedade, tal como delineada pela Constituição e pela jurisprudência dos tribunais superiores. O Superior Tribunal de Justiça, em diferentes casos, tem afirmado que as limitações administrativas decorrentes da legislação ambiental, ainda que relevantes, não geram automaticamente direito à indenização, desde que não resultem em esvaziamento completo da utilidade econômica do bem.
Entretanto, quando a legislação determina que determinada área deve integrar o domínio público, em razão de sua inclusão em categoria de proteção integral que exige titularidade estatal, o quadro se modifica. Nessas situações, a manutenção indefinida de propriedades privadas dentro da unidade é incompatível com a conformação normativa daquela categoria, o que reforça a necessidade de utilização da desapropriação ambiental como instrumento para harmonizar o direito de propriedade com o interesse público ambiental qualificado.
O Estado, ao criar a unidade e não regularizar a terra, atua abaixo do patamar mínimo exigido para garantir o direito fundamental ao meio ambiente. Trata-se, portanto, de um desrespeito ao princípio da proibição de proteção insuficiente, mormente quando existe dinheiro em caixa com essa finalidade, como é o caso.
Articulação
Nos últimos anos, foram editados atos normativos e instruções que buscam conferir maior coerência e celeridade à regularização fundiária de UCs federais, incluindo regras sobre levantamento dominial, critérios para identificação de ocupações de boa-fé, celebração de acordos e desintrusão de áreas ilegalmente ocupadas [1]. Essas iniciativas mostram que a regularização fundiária deixou de ser tratada como tema periférico, passando a ocupar posição central na política de áreas protegidas.
Também merece destaque a articulação da regularização fundiária com outros instrumentos de política ambiental e agrária, como a destinação de florestas públicas, programas de combate ao desmatamento e metas de conservação da biodiversidade. Nesse cenário, a utilização prioritária da compensação ambiental para financiar desapropriações desponta como peça-chave para compatibilizar as agendas de conservação e de ordenamento territorial.
Não se pode perder de vista que os conflitos fundiários em UCs envolvem, com frequência, comunidades tradicionais, pequenos proprietários e posseiros de boa-fé, que acabam expostos a situações prolongadas de insegurança jurídica e limitação de uso, sem que o Estado ofereça uma solução satisfatória. Ao mesmo tempo, os empreendimentos que geram impactos significativos, e que por isso dão causa à compensação ambiental, conseguem cumprir sua obrigação por meio de aportes financeiros relativamente controláveis do ponto de vista empresarial.
Direcionar a compensação ambiental para a desapropriação de imóveis inseridos em UCs de domínio público, especialmente em áreas onde vivem comunidades vulneráveis, pode contribuir para reduzir assimetrias e fortalecer a justiça ambiental, na medida em que o custo da proteção recai, em maior proporção, sobre quem efetivamente gera impactos significativos. Dessa forma, a consolidação territorial das unidades passa a dialogar não apenas com a proteção da biodiversidade, mas também com a promoção de uma distribuição mais equitativa de ônus e benefícios ambientais.
Nessa perspectiva, a ideia é que se coloque na ordem do dia a necessidade de avaliação entre o montante disponível para fins de compensação ambiental com o pagamento das indenizações devidas aos proprietários privados. Para tanto, é preciso que se entenda a ligação entre os recursos de compensação ambiental e o pagamento de indenizações, inclusive no que diz respeito à definição da ordem de pagamento.
‘Parques de papel’
A experiência brasileira revela um descompasso relevante entre a densidade normativa do Snuc e a realidade da implementação das UCs, especialmente no que se refere à regularização fundiária das áreas de domínio público. A permanência de extensos passivos fundiários, associada à naturalização de um regime de transição originalmente pensado como excepcional e passageiro, compromete a efetividade da proteção ambiental e aproxima muitas UCs da condição de “parques de papel”.
A compensação ambiental do Snuc, cuja constitucionalidade foi afirmada pelo STF, oferece uma base jurídico-financeira consistente para enfrentar esse quadro, sobretudo quando articulada a políticas e normas recentes de regularização fundiária e à compreensão da desapropriação ambiental como expressão da função socioambiental da propriedade. Enquanto não forem exauridos, de forma planejada, transparente e prioritária, os instrumentos e recursos disponíveis, e em especial a compensação ambiental, permanece enfraquecida qualquer alegação de impossibilidade financeira ou técnica para a consolidação do domínio público nas UCs.
A concretização do modelo de áreas protegidas exige que a compensação ambiental deixe de ser vista apenas como um mecanismo de “compensação financeira” e passe a ser utilizada, de modo efetivo, como alavanca para a desapropriação, a regularização fundiária e a superação do regime de transição que, na maioria dos casos, tem sido mais um sintoma de inefetividade do que um caminho para a proteção ambiental constitucionalmente prometida. Afinal de contas, os recursos de compensação ambiental são naturalmente vocacionados à efetivação da desapropriação ambiental.
É de se questionar o porquê da existência de valores vultosos de compensação ambiental, que simplesmente não são aplicados, a despeito da existência de um passivo imenso de imóveis a serem regularizados dentro de UCs. Fica prejudicada, ao menos parcialmente, o entendimento comum de que o Estado não dispõe de recursos para pagamento das desapropriações se existente montante não gasto disponível a título de compensação ambiental.
Diante desse quadro, há que se considerar o seguinte: (a) o regime de transição dos proprietários privados em UCs não se sustenta constitucionalmente quando convertido em situação permanente; (b) apenas a posse e o domínio públicos permitem o pleno atingimento dos fins constitucionais para os quais os espaços territoriais especialmente protegidos são instituídos; (c) o ICMBio acumula um expressivo passivo de regularização fundiária no interior das UCs federais; (d) em diversas dessas unidades há recursos financeiros disponíveis a título de compensação ambiental; e (e) somente o esgotamento responsável dos valores atualmente disponíveis, com a correspondente realização das indenizações devidas, tornará crível a alegação estatal de insuficiência de recursos. Também é preciso definir critérios objetivos de priorização para essas indenizações via compensação ambiental, a exemplo de áreas prioritárias para conservação biológica, de proprietários em vulnerabilidade social ou de áreas com maior risco de degradação.
[1] IN ICMBio nº 4/2020 (desapropriação e indenização), IN ICMBio nº 5/2016 (compensação de reserva legal em UCs) e IN ICMBio nº 24/2025 (doação e créditos ambientais antecipados para regularização fundiária).
Fonte: Conjur
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