Imigrantes brasileiros, legais ou ilegais, nos Estados Unidos. Profissionais brasileiros morando nos Estados Unidos temporariamente ou sem prazo definido. Descendentes desses imigrantes e profissionais brasileiros, morando nos Estados Unidos, no Brasil, ou em qualquer outro lugar do mundo. Cidadãos americanos e portadores de Greencard morando dentro ou fora dos Estados Unidos, e possuindo bens onde quer que seja. Brasileiros, morando fora dos Estados Unidos, mas com investimentos financeiros e outros bens nos Estados Unidos – inclusive aquele apartamento, ou casa, em Miami e região, comprado durante a baixa generalizada do mercado imobiliário americano e do dólar, durante a recessão pós-crise financeira de 2008.
Donos de holdings no exterior que retenham bens nos Estados Unidos. Advogados, contadores e consultores que prestem serviços para qualquer das pessoas acima. Afficionados do direito tributário e direito americano. A lista é longa, mas se você se reconheceu em qualquer das categorias acima, este artigo é para você – porque, sim, vamos falar sobre tributação sobre heranças e doações nos Estados Unidos.
No Brasil É Muito Pior!(?)
É inquestionável que o sistema tributário brasileiro é complexo e, por que não dizê-lo, confuso. Muitos tributos, alta carga tributária, baixo retorno para o contribuinte e para a população em geral. Ok, todos sabemos de cor os argumentos básicos. Até porque, não faz tanto tempo que passamos pela tortura das eleições, tortura essa que o Whatsapp fez alcançar a todos os brasileiros, worldwide… Mas não se enganem, o discutível maior grau de organização do sistema tributário americano não significa sua menor complexidade.
Claro que o fato de ser a maior economia do mundo1, com uma população de aproximadamente 328 milhões2, dos quais aproximadamente 162 milhões são economicamente ativos3, contribui para a maior complexidade do sistema. Também relevantes são os fatos do sistema tributário americano, de forma institucionalizada e perene, ser mais antigo que o brasileiro4, e que o orçamento do governo federal americano é normalmente bem maior do que o brasileiro – para o ano de 2019, está previsto em aproximadamente 3,4 trilhões de dólares5, enquanto que o brasileiro está na casa dos 3,2 trilhões de reais.
Contudo, esses fatores parecem contribuir mais diretamente para o tamanho do sistema tributário americano, sendo indireta sua contribuição em complexidade. O que, em verdade, parece crucial para a complexidade do sistema tributário americano é um fato que normalmente passa despercebido: diferentemente do Brasil, não há repartição de competência tributária nos Estados Unidos. Caso a leitora ou o leitor não esteja familiarizado com esse jargão do direito tributário, é mais ou menos o seguinte: a Constituição brasileira define categoricamente quais tributos União, estados, municípios e Distrito Federal podem ou não cobrar – obs.: o termo usado na Constituição é instituir. Assim, a União cobra IR, estados e Distrito Federal cobram ICMS, etc.
Por sua vez, a constituição dos Estados Unidos – cujo caráter tributário é menor e, em geral, é mais sintética –, além de não ser tão específica quanto a brasileira a respeito das espécies de tributos possíveis, em geral não restringe este ou aquele tributo a tal ou qual ente federado. Como resultado, é possível existir a mesma espécie de tributos nos três níveis, federal, estadual e municipal, cada um com suas regras específicas, alíquotas, etc. Esse resultado é especialmente relevante para o público alvo deste artigo, porque os contribuintes dos tributos sobre heranças e doações nos Estados Unidos possivelmente são atingidos por várias dessas cobranças simultaneamente…
Ademais, o sucesso de um sistema tributário está intimamente relacionado ao grau de acesso, pela autoridade tributária, a informações confiáveis e pertinentes para a tributação. E nisso, os Estados Unidos são mestres, com seu FATCA, FBAR, e um sem-número de tax forms, o que significa pilhas de documentos para os contribuintes…
Ainda tem alguém reclamando do Brasil?
O Que São Esses Tributos?
Entrando em maiores detalhes, os tributos americanos que incidem sobre transmissões gratuitas causa mortis, isto é, sobre sucessões (heranças, legados), são normalmente chamados de Estate Tax. Por sua vez, os tributos americanos que incidem sobre transmissões gratuitas inter vivos, isto é, sobre doações, são normalmente chamados de Gift Tax. Se é que se pode fazer generalizações aqui, esses tributos são primeiramente devidos pelo transmitente (espólio, doadora ou doador), e subsidiária e proporcionalmente pelo recipiente (sucessora ou sucessor, donatária ou donatário).
As semelhanças com o tupiniquim ITCMD (chamado de ITCD em alguns Estados) são óbvias. Por outro lado, apesar de Estate Tax e Gift Tax serem conjuntamente chamados de Transfer Tax, em geral não há uniformidade de regras entre os entes federados americanos.
Ademais, alguns estados americanos têm ainda o chamado Inheritance Tax, semelhante ao Estate Tax, mas que foca a tributação no recipiente dos bens, no caso a sucessora ou o sucessor, tomando em consideração grau de parentesco, entre outros fatores.
Quem Tem Que Pagar?
Muito bem. Sabemos, então, que heranças e doações são tributadas nos Estados Unidos, não apenas pelo governo federal americano, mas eventualmente também por estados e municipalidades (raro) americanos. A próxima pergunta naturalmente seria: quem especificamente está sujeito a esses tributos? A resposta está nos diferentes conceitos de residência para fins fiscais.
Em nível federal, residência para fins fiscais eminentemente depende de presença física substancial nos Estados Unidos. Sem entrar em detalhes sobre o cálculo de presença física substancial, duas regras gerais são bastante úteis: (i) caso você fisicamente permaneça nos Estados Unidos por 120 dias ou menos em qualquer ano-calendário, você evita qualificação de residente fiscal indefinidamente; (ii) caso você fisicamente permaneça nos Estados Unidos por pelo menos 183 dias em qualquer ano-calendário, você se qualifica como residente fiscal.
Por outro lado, cidadãos americanos ou portadores de Greencard, ainda que também cidadãos brasileiros (ou de qualquer outro país, os brasileiros não são privilegiados), são automaticamente considerados residentes americanos para fins fiscais. Logo, mesmo que morem fora dos Estados Unidos, cidadãos americanos ou portadores de Greencard podem também ser alcançados pelo Estate Tax e Gift Tax.
Em nível estadual, residência e domicílio são conceitos dependentes dos fatos caso a caso. Sem querer generalizar as normas aplicáveis em 50 Eetados, o intuito de residir no território de um certo Estado americano é fator relevante. Porém, excluindo-se os casos de nota de rodapé ou de questão de prova daquela professora ou professor picuinha, morar em determinado estado americano, em geral, qualifica você como residente para fins fiscais, ainda que a demonstração de intuito seja discutível.
É também verdade que as municipalidades americanas normalmente não impõem Estate Tax ou Gift Tax, e que alguns Estados não impõem um ou outro, ou nenhum. No entanto, essa situação pode mudar a qualquer momento, uma vez que, aqui, não há impedimento jurídico para a iniciativa legislativa.
Por fim, não apenas residentes para fins fiscais podem ser atingidos pelo Estate Tax e Gift Tax, mas também detentores de certos bens localizados dos Estados Unidos em relação a esses bens. É sobre o que vamos falar em seguida.
Quais Bens São Atingidos?
Em relação aos Estate Tax e Gift Tax federais, quaisquer bens transferidos por transferentes residentes fiscais nos Estados Unidos são atingidos. Em outras palavras, mesmo bens localizados fora dos Estados Unidos – um imóvel de família ou o saldo positivo de uma conta bancária no Brasil, por exemplo – podem ser alcançados. Isso pode não parecer justo, especialmente para algumas das leitoras e leitores que acompanhem a evolução do Recurso Extraordinário no 851.108 no Supremo Tribunal Federal, mas essas são as regras do jogo nos Estados Unidos.
Por outro lado, em caso de transferentes não-residentes fiscais nos Estados Unidos, apenas certos bens localizados nos Estados Unidos são alcançados.
No Gift Tax federal, apenas bens tangívies, por exemplo imóveis, são atingidos. Ações, quotas, e títulos de crédito são, em geral, considerados bens intangíveis, portanto não atingidos pela tributação.
No Estate Tax federal, a definição de U.S. property, isto é, os bens sujeitos à tributação, é relativamente mais complexa, contudo ações e quotas de pessoas jurídicas estrangeiras (isto é, não-americanas), depósitos bancários nos Estados Unidos e títulos de crédito americanos são geralmente excluídos da tributação.
Em nível estadual, as regras podem variar de Estado para Estado. Por isso, melhor não nos aventurarmos abstratamente em generalizações, sendo altamente recomendável analisar os fatos concretos. De todo modo, serve o alerta de que o situs do bem, isto é, o local em que se localiza o bem, pode autorizar a tributação mesmo quando o transferente não é ou não era residente de certo Estado americano para fins ficais.
O Grande Medo: A Alíquota de 40%.
Muitas pessoas se assustam ao ouvir falar da suposta alíquota máxima de 40% de tributação de heranças nos Estados Unidos. Isso é especialmente verdade se comparada à alíquota máxima de 8% do ITCMD (teto definido pelo Senado Federal). Seria essa alíquota mais uma lenda, um mito para assustar investidores e proprietários incautos?
Não, essa alíquota de 40%, aplicável tanto para o Estate Tax quanto para o Gift Tax federais, não é uma lenda, por mais extraordinariamente assustadora que seja. Contudo, existem isenções que, para a grande maioria de heranças e doações nos Estados Unidos, afastam totalmente esses tributos.
Primeiro, para o Gift Tax federal, existe a isenção anual de 15 mil dólares. Este é o valor para o ano de 2019, havendo atualizações anuais pela inflação. Em outras palavras, doações que ocorrerem durante o ano de 2019 e cujo valor agregado é de até 15 mil doláres não são tributadas.
Segundo, para ambos Estate Tax e Gift Tax federais, existe a isenção única (lifetime exclusion) de 11,4 milhões de dólares para o ano de 2019. Este valor é também atualizado anualmente pela inflação. Assim, apenas o valor do espólio que exceda esse patamar está sujeito ao Estate Tax. Ademais, o valor de doações anuais que exceda a isenção anual de 15 mil dólares do Gift Taxfederal não é imediatamente tributado, mas reduz cumulativamente a isenção única.
Naturalmente, há certas exceções e normas subsidiárias para as isenções acima. De todo modo, caso a pessoa não esteja sujeita aos tributos por razão de residência fiscal ou localização do bem, não tem nem que se preocupar com essas isenções.
Em nível estadual, as alíquotas e as isenções tendem a ser menores. Novamente, não entraremos em maiores detalhes e números aqui, justamente para evitar generalizações indevidas. Contudo, os patamares são ainda bastante generosos, e apenas a minoria dos casos de fato acabam em tributação.
Por fim, caso ainda haja tributo devido após as isenções – pode ter certeza, isso é um bom resultado, porque ter mais do que 11,4 milhões de dólares para transferir absolutamente não é uma situação ruim –, há diversas estratégias de planejamento fiscal à disposição, inclusive o uso de holdings e trusts.
Posso Dormir Tranquilo, Então?
Ao ler sobre os altos patamares de isenção, a maioria das leitoras e leitores fizeram um cálculo mental simples do valor do seu patrimônio total, ou pelo menos de seus bens localizados nos Estados Unidos, e concluíram que não estão sujeitos à tributação de heranças e doações americana. O sentimento de alívio por não cair na alíquota de 40% é reconfortante… No entanto, o problema não termina aqui.
Como qualquer sistema tributário minimamente complexo, não ter tributo a pagar não significa não ter declarações a fazer. As famigeradas obrigações acessórias também existem, claro, nos Estados Unidos. Assim, transferentes (espólio, doadoras e doares) e recipientes (sucessoras e sucessores, donatárias e donatários), residentes fiscais ou não nos Estados Unidos, conforme o caso, devem completar e enviar as declarações fiscais pertinentes dentro do prazo correto.
Do contrário, há um arsenal de multas e outras sanções dolorosas (isto é, caras!) a postos e que, não duvidem, é usado sem dó pela autoridades fiscais americanas.
Fonte: Jota Info
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