ACESSO RESTRITO À memória de GUIOMAR CARAM
1. Já tive ocasião de referir noutra parte como foi que, jovenzinho feioso, com cabelos empastados e no uso canhestro de um chapéu, topei com o direito notarial.
O meridiano agudiza a sensibilidade à beleza. Talvez por isto eu me proponha voltar ao relato deste amor à primeira vista (ou melhor: ao primeiro ouvido). Amor cortês, entenda-se bem. No mais ajustado estilo do stil nuovo de Dante.
2. Foi uma professora. Sim, foi uma professora, Guiomar Caram, quem inventou que existia um tipo chamado Luís de Camões, dizia ela que poeta e influído por um certo Petrarca. Para um pouco menos que analfabeto, aos 16 anos de idade, aquele mocinho feioso, cabeça oca habitual, recebera então informações demasiadas. Além disso, havia de memorizar (para o resto de sua tosquíssima existência) aquele camoniano “mais servira, se não fora,/para tão longo amor, tão curta a vida!” (mas que tinha eu a ver com o fato de Jacó apaixonar-se de Raquel…, e, por obra e arte disto, a mim caber a faina de decorar sonetos?!).
Acontece que o pequeno idiota ainda teria algo mais a aprender, o que foi decisivo para seus amores futuros.
Acontece que lhe disseram que Petrarca era filho de Petrarco, o grande notário florentino. Isto foi o que lhe entrou pelas orelhas e contaminou definitivamente os neurônios: “Petrarca, filho de Petrarco, um notário florentino”.
Acontece que aquela azêmola, depois de maravilhar-se com o arbítrio de umas vogaizinhas serem hábeis para distinguir um pai e um filho, vangloriou-se de saber que coisa era um “florentino”.
Acontece, todavia, que o parvusdaquele moleque feinho não tinha ideia de que coisa era feito um “notário”!
Acontece que, isto acontece tantas vezes na vida, o pequeno feioso apaixonou-se pelas maravilhosas palavras que ouvira: “Petrarca, filho de Petrarco, grande notário florentino!”. E repetia esta frase tantas vezes quantas lhe ocorria dizê-la, ao modo de quem declama versos amorosos a uma gentil e misteriosa e inalcançável musa. Andava o molecote feliz da vida com sua descoberta, e sua audiência, meio enfastiada ou de todo.
3. Dias depois, na posse de um dicionário, le petit laid leu e não conseguiu entender coisa alguma sobre o conceito de “notário”.
Mas a vida tem seus atalhos.
O pobre moleque passou mal. Foi a primeira vez que pensou morrer (depois disso, é verdade, já morreu umas centenas de vezes, com boa recuperação, felizmente). Caiu-lhe a pressão, parece, e o tipo foi levado às pressas para um sofá. Acompanhou-o uma namoradinha (era feioso, é verdade, mas o menino não se dava conta disto).
Acontece que, de surpresa (ou por malícia), apareceu ali sua amada M*** (hoje, quero eu acreditar, uma respeitável bisavó de sete bisnetos… e dois tetranetos).
Acontece que essa amada M*** (que não era ainda bisavó…) afastou prontamente a namoradinha do feioso, sem mínima sutileza (bem é que se averbe este fato), e segurou as mãos do pobre coitado, que, em razão disto, entrou em perigoso estado cataléptico, do qual há dúvidas quanto a já ter saído. Naquele dia, morreu uma dúzia de vezes. Mas se reconstituiu.
Acontece que, com esse episódio, ele perdeu a namoradinha, claro. E não conquistou a amada M***, claro também. (Ainda por cima, os amigos se desesperavam de ouvi-lo narrar estes fatos com recorrentes e torturantes minúcias).
4. Logo veio o carnaval. O moleque, sem a namoradinha, sem a amada M*** e sem a consoladora presença dos amigos (que o evitavam, naquele transe, a todo custo), refugiou-se numa biblioteca: a da PUC de São Paulo (esclarece-se, believe it or not: a PUC de São Paulo era uma universidade, isto ainda existia naquela época; uma universidade que era também católica, porque o Magistério católico àquela altura exercia autoridade e sinalizava critérios para as universidades).
Acontece que, na biblioteca, o tipo se enfurnou no meio dos livros. Meditou, primeiro e reiteradamente, por algum tempo, sobre eventuais vantagens de tomar um chute nos fundilhos. (Tomara ele dois de uma só vez).
Acontece que não viu nisto vantagem alguma, salvo o de ganhar experiência para os outros chutes nos fundilhos que receberia ao largo da vida.
Acontece que, a páginas tantas, descobriu que Petrarco fora mesmo um notário, e caiu-lhe às mãos uma larga lista de notários. Então, soube que notários eram grandes redatores e que a verdade lhes era de todo amorável. Então, era isto? O notário é um poeta ou um prosador que ama a verdade. Que coisa! Um arranjador de letras destinado a amar a verdade. Não haveria coisa melhor neste universo criado (coisa melhor, àquela altura, só talvez sua inalcançável M***, a depois “Bisavó de Tetranetos”).
5. Acontece, pois, que, sem a namoradinha e sem a amada M***, o pequeno idiota, com os fundilhos ainda mal acostumados aos chutes, descobriu-se apaixonado pela doutrina notarial: uma arte de escrever a verdade.
Acontece que nunca mais se livrou desta paixão, porque com ela se incentivou a sempre amar a verdade, bem que norteia e vivifica a fé pública notarial.
O que lhe entrara pelos ouvidos, provou-se com a história de uma formidável Magistratura, a Magistratura de uma gente que, antes mesmo de Petrarco, arrumava letras para determinar direitos, modulava pontos e vírgulas para proteger as liberdades do povo, aquela Magistratura de uns profissionais de direito que, por sua conta e risco, laboram e aconselham em prol da comunidade e, de sobra, angariam receita para os cofres públicos.
Acontece que aquele pequeno idiota envelheceu, acaso envileceu-se em algumas coisas, mas nunca, ainda na senectude que o acabou indefinidamente de estragar, deixou de trazer no peito aquele seu amor juvenil pelo Notariado.
E, pois, acontece que valem a pena os chutes nos fundilhos, quando com eles, ou apesar deles, confirma-se que Camões existiu e que Petrarca foi mesmo filho de Petrarco, o grande notário florentino, esta figura de notário de ontem que se reconhece vivida e vívida na tradição recolhida em cada bom notário de hoje.
Fonte: CNB-CF
