A utilização dos mecanismos de solução extrajudicial de conflitos, seja ele on-line ou não, não pode decorrer de impositividade no seu uso
No último 02 de janeiro, entrou em vigência o Decreto nº 10.197, que alterou o Decreto nº 8.573/15, para estabelecer que a plataforma Consumidor.gov.br passe a ser considerada a plataforma digital oficial da administração pública federal direta, autárquica e fundacional para autocomposição nas controvérsias envolvendo relação de consumo.
A plataforma foi implementada em meados de 2014, com o objetivo de criar meios de desburocratização dos procedimentos em que os consumidores pretendem apresentar reclamações e pleitear a solução de conflitos com as empresas prestadoras de serviços e fornecedoras de produtos sem necessariamente ter de enfrentar o calvário das ações judiciais.
Outro passo importante no processo de desburocratização na solução dos conflitos, é a tentativa de se criar um sistema de justiça interligado, de modo a colocar em rede a plataforma do Judiciário (PJe) e dos órgãos de proteção do consumidor, permitindo que ao se iniciar uma ação judicial contra empresa prestadora de serviço ou fornecedora de produto que esteja cadastrada na respectiva plataforma, as partes tentem uma conciliação on-line, em curto espaço de tempo e independentemente do andamento do processo.
Nesse mesmo sentido, em 2015 a Lei de Mediação (13.140/15) também passou a permitir em seu artigo 46 a utilização da internet para tentativa de mediação de conflitos, o que igualmente se aplica a conciliação. Em ritmo semelhante, seguiu o novo Código de Processo Civil, em vigência desde 2016, trazendo em seu artigo 3º, parágrafo 3º os meios extrajudiciais de composição de conflitos como um dos seus principais pilares.
Outras tantas providências têm sido adotadas com essa mesma finalidade, como a permissão para se realizar atividades jurídicas não litigiosas em cartórios.
Por outro lado, é preciso chamar a atenção para o fato de que a utilização dos mecanismos de solução extrajudicial de conflitos, seja ele on-line ou não, não pode decorrer de impositividade no seu uso, devendo resultar de um processo de transformação cultural. A preocupação se justifica em razão do crescimento do número de situações em que processos envolvendo relação de consumo, sobretudo, têm sido extintos por decisões judiciais determinando que o seu autor cadastre seu pleito anteriormente em plataformas de solução extrajudicial de conflitos. O cidadão, portanto, só poderá buscar o Poder Judiciário para tentar resolver o seu conflito envolvendo relação de consumo após demostrar que não teve êxito na tentativa de acordo extrajudicial.
Com o devido respeito aos que entendem ser esta uma interpretação adequada do sistema de leis, entendemos que o desenvolvimento de mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos, aprimorados com a utilização das novas tecnologias, assim também a necessária transformação da cultura do demandismo judicial, não nos permite afastar do cidadão o exercício pleno e livre do acesso à justiça, aqui entendido como a liberdade de bater às portas do Poder Judiciário para pleitear uma solução ao conflito em que se está inserido.
Por certo que novos caminhos de solução de conflitos e o uso de novas tecnologias permitindo aprimorar a prestação do serviço jurisdicional são muito bem-vindos e devem ser incentivados de todas as formas, no entanto, a sua impositividade mostra-se indevida sob todos os aspectos.
É preciso partir da premissa de que o atendimento irrestrito do cidadão que sente seu direito ameaçado ou violado é função inafastável do Poder Judiciário, por determinação constitucional, pertencendo a cada sujeito a decisão de buscar ou não outros caminhos.
A nosso ver, há um flagrante equívoco em se pensar que o cidadão busca o Poder Judiciário para solução de seus conflitos em detrimento dos demais meios permitidos em lei, ainda que sabendo da demora do resultado do processo judicial, por mera deliberação caprichosa.
Em verdade, apesar de permitidos em lei e de algum avanço implementado nos últimos poucos anos, os meios de solução extrajudiciais de conflito não transformaram a cultura jurídica suficientemente, de modo a impactar no comportamento social. A falta de conhecimento sobre tais meios, suas possibilidades, condições de uso, custos, validade e eficácia são desconhecidos pelos próprios alunos que frequentam os cursos de direito. A impositividade desses meios, sob a alegação de que se trata de conflitos de menor complexidade e, portanto, devem ser resolvidos pelas plataformas digitais abrindo espaço para uma maior dedicação do Judiciário as causas de maior complexidade, se mostra uma afronta ao princípio da isonomia, a começar pelo fato de que não se tem um critério seguro para se definir o que seria um direito de menor ou maior.
É preciso deixarmos de lado a falsa ideia de que o aprimoramento de procedimentos só se mostra possível a partir da restrição de direitos, se por um lado, o implemento e aprimoramento de novos meios e instrumentos de solução de conflitos é bem-vindo e não há dúvida sobre isso, a preservação de garantias constitucionais é ainda mais relevante, mostrando-se fundamental ao aperfeiçoamento do Estado Democrático.
Adriano Cesar Braz Caldeira é mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP, doutor em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie/SP, professor de Direito Processual Civil nos cursos de graduação e pós-graduação na Universidade Mackenzie e sócio do escritório Souza e Caldeira Advogados.
Fonte: Valor Econômico
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