Há diversos exemplos envolvendo o emprego da adaptação stricto sensu envolvendo o estatuto real (geralmente correspondente à lex situs), tema que já tratamos em artigos anteriores nesta coluna, especialmente este.
Há um exemplo que merece ser citado neste artigo por envolver um caso decorrente de conflito de qualificação: o caso da herança vaga de um inglês envolvendo imóvel em Portugal1.
Suponha que um inglês, sem herdeiros, residente na Inglaterra, tenha falecido. Deixa imóveis em Portugal. Trata-se, pois, de um caso de herança vaga (bona vacantia).
De um lado, o direito inglês trata o tema do destino da herança vaga como estatuto real, e não como estatuto sucessório. As normas sucessórias inglesas nada versam sobre o assunto. São suas normas de direito das coisas que estabelecem o right to escheat (o direito de confisco), de origem feudal, que foi mantido pelo Administration of Estates Act, de 1925, para imóveis. Segundo essa regra, a herança vaga reverte-se em favor da Coroa como uma espécie de expropriação.
De outro lado, o direito português cuida da herança vaga como regra de estatuto sucessório, e não como estatuto real. As regras de Direito das Coisas em Portugal não oferecem solução. São suas regras sucessórias que estabelecem a reversão da herança vaga ao Estado2.
Trata-se de um vácuo de normas materiais aplicáveis (Normenmangel, no direito alemão) ou de um conflito negativo de qualificação.
Pelas regras tradicionais de conflito de normas, não haveria lei alguma a ser aplicada. Haveria um vácuo normativo. A lex successionis é a lei inglesa, a qual – nas suas regras sucessórias – é silente quanto ao destino da herança vaga por qualificar esse assunto como estatuto real. A lei rei sitae (que é a lei de Portugal) guarda também silêncio, pois Portugal qualifica o tema do destino da herança vaga como estatuto sucessório.
Sob essa ótica, no caso acima, os imóveis situados em Portugal tornar-se-iam res nullius, o que é um resultado inadmissível por contrariar o espírito de ambos os ordenamentos jurídicos envolvidos. Por essa razão, o caso atrai a técnica da adaptação stricto sensu para afastar esse resultado inadmissível.
A doutrina aponta dois caminhos para essa adaptação stricto sensu3, todos desaguando no mesmo resultado: a apropriação da herança vaga pelo Estado português.
O primeiro é fazer a adaptação recair sobre o elemento de conexão, alterando-o. A ideia seria aplicar a lex rei sitae para a questão sucessória da herança vaga. Assim, a lei portuguesa (lex rei sitae) seria aplicada para reverter os imóveis vagos para o Estado português. Essa solução parece-nos mais adequada por força do que chamamos de subsidiariedade na intervenção no conteúdo material das normas.
O segundo é adaptar as normas materiais, criando, na lex rei sitae, a regra de que o Estado português apropria-se das heranças vagas. Promove-se, assim, uma integração do direito lusitano.
Alerte-se que, no âmbito da União Europeia, esse conflito negativo de qualificação em relação à herança vaga não mais existe: o art. 33º do Regulamento Europeu das Sucessões4 disciplinou o tema, outorgando ao Estado membro do lugar do imóvel o direito à apropriação5.
Expostos esses exemplos, indaga-se: quais são os parâmetros para a adaptação stricto sensu?
A doutrina não nos parece ter clareza. Reporta-se, na prática, ao juízo equitativo do juiz no caso concreto, adaptando as regras conflituais e o próprio conteúdo das normas materiais6. Adota, como diretriz, a busca por uma situação jurídica justa no caso concreto. Por essa razão, o tema costuma ser abordado pela doutrina mediante exemplos empíricos com respostas a cada caso concreto.
Em resumo, a adaptação stricto sensu é técnica que corrigirá um resultado inadmissível ou impossível causado pelas regras conflituais tradicionais de direito internacional privado e operará mediante alteração, no caso concreto, dessas regras conflituais ou do conteúdo das próprias normas em conflito.
Exemplos como o tratado neste artigo podem ser úteis para iluminar problemas sucessórias transnacionais envolvendo imóveis situados no Brasil.
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1 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, p. 145; MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, p. 556.
2 É o art. 2152º do Código Civil português:
Artigo 2152.º
(Chamamento do Estado)
Na falta de cônjuge e de todos os parentes sucessíveis, é chamado à herança o Estado.
3 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 557-559.
4 Art. 33º do Regulamento (UE) nº 650/2012:
Artigo 33.º
Herança vaga
Na medida em que, nos termos da lei aplicável à` sucessão por força do presente regulamento, não houver herdeiros nem legatários de quaisquer bens ao abrigo de uma disposição por morte, nem qualquer pessoa singular que possa ser considerada herdeiro por via legal, a aplicação da lei assim determinada não~o impede que um Estado-Membro ou uma entidade designada para o efeito por esse Estado-Membro possa apropriar-se, nos termos da sua própria lei, dos bens da herança, situados no seu território, desde que os credores tenham o direito de obter a satisfação dos seus créditos a partir da totalidade dos bens da herança.
5 Afonso Patrão defende que, no caso supracitado, ainda que não se aplicasse (e realmente não será aplicável pelo fato de o Reino Unido ter saído da União Europeia no ano de 2020), o caso seria resolvido pelo reenvio (doctrine of renvoi): o direito inglês devolveria a regra sucessória para Portugal em razão da adoção da foreign court theory. Por essa foreing court theory, há de aplicar-se a lei que seria aplicada pelos tribunais da lex rei sitae. O direito inglês admite o sistema do fracionamento da sucessão (PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, p. 145).
6 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, p. 143.
Fonte: Migalhas
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