Luis Alfredo Pontes Ramos
Na primeira sessão do STF em 2024, debateu-se a aplicação do regime de separação de bens a maiores de 70 anos em união estável. Decidiu-se que tal regime pode ser modificado por escritura pública ou pacto antenupcial
I) Do julgamento do tema de repercussão geral 1236, do STF
No dia 1/2/24, já na primeira sessão plenária do STF, houve uma mudança de paradigma no que tange aos direitos patrimoniais e existenciais dos maiores de 70 anos conviventes em união estável. Foi julgado o agravo em recurso extraordinário de número 1.309.642, relativo ao tema de repercussão geral 1236, em que se debatia a constitucionalidade da aplicação do regime da separação legal de bens aos cônjuges maiores de 70 anos, instituído no art. 1641, II, do CC, bem como se discutia a possibilidade de aplicação da decisão às uniões estáveis.
No julgamento, votou o ministro por dar interpretação conforme a Constituição ao art. 1.641, II, do CC, de forma a afastar a natureza de norma cogente do inciso, estabelecendo a sua natureza dispositiva, ou seja, com permissivo de afastamento por vontade das partes, e também estendeu a regra às uniões estáveis. Porém, estabeleceu-se que o afastamento do regime da separação legal somente pode ocorrer por lavratura de escritura pública, no caso de união estável, ou por pacto antenupcial, para os casamentos. O voto do relator foi seguido pelos demais ministros, fixando-se a seguinte tese:
“Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do CC, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública”
Foi um julgamento histórico, e que trouxe repercussões práticas imediatas. A Suprema corte colocou nas mãos dos notários o mister de instrumentalizar a vontade das partes de forma a afastar o regime da separação obrigatória aos maiores de 70 anos, em virtude da capacitação técnica de tais agentes estatais, de seu dever de orientação jurídica e de sua imparcialidade, afastando eventuais fraudes que poderiam ser perpetradas contra estas pessoas, cuja vulnerabilidade não se nega.
No entanto, no que diz respeito à união estável, há uma nova figura que permite que se declare união estável perante qualquer Oficial de Registro Civil do país: o termo declaratório de união estável. É necessário cogitar se tal instrumento tem a capacidade de afastar o regime da separação legal de bens do art. 1641, II, do CC, embora a tese fixada pelo STF mencione apenas a escritura pública como meio idôneo para tanto.
Cabe, no entanto, uma análise a respeito da natureza jurídica do termo declaratório de união estável para que seja possível prosseguir na indagação proposta.
II) Da natureza jurídica do termo declaratório de união estável e da sua viabilidade como ferramenta para afastar o regime da separação legal do art. 1641, II, do CC
De proêmio, é necessário deixar claro o que o termo declaratório de união estável NÃO é. O termo declaratório de união estável não é uma escritura pública. Chega-se a esta conclusão ao se analisar o disposto no art. 7º, I, da lei 8935/94, que estabelece que cabe exclusivamente aos notários a lavratura de escrituras públicas. Em sendo o termo um ato de competência exclusiva de oficiais de registro civil das pessoas naturais, é forçoso concluir que não se trata de uma escritura pública. O termo não é um ato de registro, pois não há a lavratura de um assento em um livro específico da serventia, nem mesmo no livro E. O provimento 149/23 do CNJ, consolidando o que foi disposto no provimento 141/23 do CNJ, estabelece, em seu art. 538, § 1º, que o título ficará arquivado na serventia, em classificador próprio. Ou seja, a normativa nacional é clara ao estabelecer que o termo declaratório não acede a qualquer livro, o que, por consequência, afasta a natureza do termo de ato de registro. É possível afirmar, também, que o ato discutido também não tem natureza de averbação, uma vez que não altera um ato principal de registro. Igualmente, não pode ser considerado um ato de anotação ou comunicação, uma vez que não liga, através de remissões recíprocas, quaisquer assentos. Não tem natureza jurídica de certidão ou traslado, pois é um ato autônomo, do qual é possível, e determinado pelo provimento 149/23 do CNJ, que se extraiam certidões, nos termos do já mencionado §1º do art. 538.
Feita a análise por exclusão da natureza jurídica do termo declaratório de união estável, o próximo passo é tentar concluir o que, de fato, É o termo. O ato guarda algumas semelhanças com termo lavrado pelo oficial para indicação de suposto pai quando do registro de nascimento sem paternidade indicada, porém possui ele uma natureza muito singular. Através do termo declaratório, é possível estabelecer regime de bens diversos do regime legal, convencionar alteração de nome dos companheiros, e também registrar a união estável no livro E do último domicílio do casal, garantindo cognoscibilidade erga omnes da relação. Diante desta singularidade, pode-se dizer que o termo declaratório de união estável possui uma natureza sui generis, diferente dos demais atos do oficial de registro civil.
Embora a natureza do ato seja sui generis, é possível classificar o termo declaratório de união estável como um instrumento público. Conforme lição de Moacyr Amaral Santos, reproduzida em artigo de autoria de Rogério Tadeu Romano1, “instrumentos são espécie de documento preconstituído, com eficácia de prova pré-constituída do ato e sua formação reclama forma especial”. É inegável que o termo declaratório de união estável tem como finalidade a pré-constituição de prova a respeito da comunhão de vida dos companheiros, embora a cognoscibilidade erga omnes somente seja atingida com o registro. E este instrumento tem natureza pública, pois emitido por um agente público, o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais (particular em cooperação com o Poder Público), no exercício de suas funções, com estrita observância de sua competência e de suas atribuições, e em conformidade com o ordenamento jurídico. Logo, classificar o termo declaratório de união estável como instrumento público é um imperativo lógico. Sendo assim, a escritura pública e o termo declaratório de união estável têm um ponto de contato significativo: ambos possuem a natureza jurídica de instrumento público.
Outra característica em comum entre o termo e a escritura pública, é que ambos os atos formalizam juridicamente a vontade das partes. A lei 8935/94, em seu art. 6º, I, permite concluir que dar forma jurídica à vontade das partes não é atribuição exclusiva dos notários, diferentemente da escritura pública. Ou seja, registradores civis das pessoas naturais, tanto quanto os notários, podem colher a vontade das partes, e dar-lhe forma pública, embora o instrumento resultante não tenha natureza de escritura pública.
É possível ir além: o termo declaratório de união estável, sendo lavrado por um Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, um profissional habilitado em concurso de provas e títulos e capacitado para resguardar a segurança jurídica dos atos da vida civil da mesma forma que um tabelião de notas, é tão válido, eficaz e seguro quanto uma escritura pública, embora a lei, por uma questão de política estatal, somente considere a escritura com título hábil para determinados atos (como no caso do art. 108 do CC, e art. 538, §7º, do provimento 149/23 do CNJ)
Em vista das semelhanças entre o termo declaratório de união estável e a escritura, parece adequado concluir que o termo tem o condão de afastar o regime da separação legal de bens aos maiores de 70 anos na união estável, embora não citado textualmente na tese advinda do tema de repercussão geral 1236.
III) Da segurança jurídica
Contudo, embora a lógica jurídica indique que aceitar o termo de união estável como meio idôneo ao afastamento do regime previsto do art. 1641, II, do CC seja uma medida adequada, os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais devem levar em conta outros aspectos, de ordem fática, para proceder à lavratura do termo na forma sustentada.
O princípio mais relevante, e a razão de ser dos serviços registrais, é a segurança jurídica. Em suma, toda a atividade extrajudicial deve ter em mente a consecução da autenticidade, segurança, eficácia e publicidade de seus atos como principal vetor interpretativo e axiológico, nos termos do art. 1º da lei 8935/94 e art. 1º da lei 6015/73. No estado da arte atual, em que pese a autonomia funcional dos registradores e a existência de um raciocínio jurídico sólido e embasado, equiparar o termo declaratório de união estável e a escritura pública, para efeitos da tese firmada no tema de repercussão geral 1236, pode implicar em litígios gravíssimos e em consequência irreversíveis aos companheiros.
Sabe-se que a sucessão é questão central na matéria de aplicação do regime da separação legal de bens. Foi uma celeuma sucessória que levou a matéria ao STF a apreciação da constitucionalidade do art. 1.641, II, do CC.
Caso algum herdeiro legítimo seja excluído da sucessão de bens particulares do de cujus em decorrência de termo declaratório de união estável lavrado por Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, dá-se azo para uma litigância entre o companheiro supérstite e os herdeiros excluídos. E pior: caso o juízo sucessório decida em favor dos herdeiros, ao companheiro supérstite não restará opção senão ser excluído da partilha de maneira irreversível, pois não é possível, conforme o precedente atual do STF, afastar o regime da separação obrigatória de bens aos maiores de 70 anos após a morte de qualquer dos companheiros.
A autonomia funcional do Oficial e uma interpretação lógico-sistemática, por mais que sejam elementos robustos para embasar o afastamento da separação obrigatória, não podem se sobrepor à função precípua dos serviços notariais registrais de resguardo da segurança jurídica.
Todavia, há uma solução prática, com supedâneo legal, que pode, ao mesmo tempo, garantir o respeito à manifestação de vontade dos companheiros idosos, resguardar a segurança jurídica destes mesmos companheiros (especialmente em questões sucessórias), e garantir a autonomia funcional do Registro Civil das Pessoas Naturais, ainda que de forma mitigada.
No âmbito do casamento, nos termos do art. 67, §5º, da lei 6.015/73, se houver impedimento ou arguição de causa suspensiva, há remessa dos autos ao Juiz Corregedor para decisão, ouvido o Ministério Público e os interessados. É factível que o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, por analogia, adote similar postura quando da lavratura de termo declaratório de união estável em que há pedido dos companheiros de afastamento da regra do art. 1.641, II, do CC. Em vez de negar o pleito dos companheiros, expedir nota explicativa, e aguardar suscitação de dúvida (ou pedido de providências, no caso do Estado de São Paulo), o Oficial pode adotar uma postura ativa, redigir uma manifestação conclusiva a respeito da possibilidade de afastamento do regime da separação legal de bens, e encaminhar a questão para decisão do juiz, após oitiva do Ministério Público.
Em havendo decisão permissiva do juiz, há garantia de segurança jurídica das partes. Embora não se possa, no âmbito correcional, afastar toda a possibilidade de litígio, em razão da natureza administrativa do mencionado procedimento e da inafastabilidade da jurisdição, as partes possuem um instrumento seguro de manifestação de vontade, que inclusive pode ser utilizado como título hábil para registro no livro E do 1º Registro Civil das Pessoas Naturais de seu último domicílio, sem que conste o regime da separação obrigatória na união estável.
E quanto ao Oficial de Registro Civil das pessoas naturais que recepcionar o termo declaratório de união estável em que conste regime diferente do regime do art. 1.641, II do CC, em hipóteses em que não tenha havido manifestação judicial ou manifestação do juiz corregedor no âmbito de dúvida registral ou pedido de providências, ou ainda manifestação do juiz corregedor nos moldes sugeridos no presente artigo? Deve qualificar o título negativamente, ou positivamente, ou ainda pode prosseguir de maneira analógica ao 67, §5º, da lei 6.015/73, como sugerido no presente artigo?
A resposta que mais parece mais adequada é que o Oficial de Registro Civil, com base na segurança jurídica e na observância do princípio da juridicidade (legalidade), deve dar qualificação negativa a termo de união estável em que não tenha havido manifestação judicial ou do juiz corregedor, nos moldes já expostos. Este autor sustenta também que não cabe ao Oficial que qualificar o termo declaratório tomar a providência de encaminhamento da questão ao juiz corregedor, com base no art. 67, §5º, da lei 6.015/73, pois esta postura ultrapassaria os limites da qualificação registral, que se restringe somente à sindicância de caracteres extrínsecos do título e compatibilidade deste com os ditames da ciência registral. Permitir essa atitude significa permitir que o Oficial interfira substancialmente no título apresentado a registro, o que parece inadequado.
IV) Conclusão
Em suma, em vista da aproximação da natureza do termo declaratório de união estável e a escritura pública, este autor entende possível a sua equiparação dos dois instrumentos para fins de afastamento do regime da separação obrigatória de bens imposta aos maiores de 70 anos, mas como a devida intervenção do juízo corregedor competente, ouvido o Ministério Público, ou ainda mediante determinação judicial. Por fim, o Oficial de Registro Civil que recepciona o termo sem as manifestações mencionadas deve qualificar negativamente o título, por obrigatória adstrição aos limites da qualificação registral.
Fonte: Migalhas
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