A discussão acerca da constitucionalidade de acesso às informações financeiras por parte dos órgãos públicos e o intercâmbio dessas informações entre esses órgãos não é matéria nova e enfrenta embates e discursos acalorados entre os estudiosos e aplicadores do Direito.
Certo é que o sigilo financeiro é uma das garantias constitucionais extraídas do direito à privacidade, forte no artigo 5º, inciso X da Carta de 1988, que impõe serem “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”.
A Lei 8.021/90 permitia à Receita Federal o acesso às informações financeiras do contribuinte, tendo referida norma sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, firmando que “a quebra do sigilo bancário do contribuinte sem prévia autorização judicial viola o inciso X do art. 5º, da Constituição Federal” (RE 261.278-AgR).
No entanto, com a edição da Lei Complementar 105/2001, a mesma corte constitucional passou a entender pela constitucionalidade de referido acesso na via administrativa pela Receita, sem necessidade de ordem judicial.
O que mudou?
Ao longo de 15 anos, me dediquei ao estudo do acesso à informação pelas autoridades fiscais, culminando no livro recentemente publicado Compliance e Informação Fiscal[1], em que questiono:
“Por que o Ministério Público, guardião da Constituição e das leis em seu múnus, precisa de autorização judicial para acessar informações financeiras dos cidadãos e das empresas, mas a Receita Federal do Brasil não precisa?
Deferiu, a Lei Complementar nº 105, poder ilimitado e irrestrito para que a autoridade fiscal acesse as informações financeiras dos contribuintes, simplesmente ao dizer que não se trata de ‘quebra de sigilo’, mas, sim, de intercâmbio de informações sigilosas?”.
A solução da questão, na verdade, após a edição da Lei Complementar 105/2001 e do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal em julgamento conjunto das ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859, demanda perquirir qual o nível de informação que poderá ser acessada pelas autoridades fiscalizadoras, em especial pela Receita Federal, na sua relação com a necessidade e utilidade dessas informações para o órgão de fiscalização.
No âmbito da Receita, são duas as formas de acesso às informações financeiras dos contribuintes.
A primeira decorre da e-Financeira, uma declaração a ser apresentada periodicamente pelas instituições financeiras à Receita no âmbito do SPED, que contém, em montantes globais consolidados, informações dos contribuintes acerca das entradas, saídas e saldos de contas bancárias por mês e por ano. No âmbito da e-Financeira, “é vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a origem ou o destino dos recursos utilizados nas operações financeiras” (parágrafo 1º do artigo 5º da IN RFB 1.571/2015)
A segunda decorre da Requisição de Movimentação Financeira (RMF), instrumento que permite à autoridade fiscal, no curso de uma fiscalização, demandar, diretamente às instituições financeiras, dados específicos da conta bancária do contribuinte. No entanto, para que a RMF seja utilizada, é exigido: (i) que exista mandado de procedimento fiscal em curso; (ii) que as informações sejam necessárias para os fins da fiscalização; (iii) que o contribuinte tenha se recusado ao fornecimento dos seus extratos bancários; e, por fim, (iv) que as informações sejam restritas a “a) dados constantes da ficha cadastral do sujeito passivo; e b) valores, individualizados, dos débitos e créditos efetuados no período” (artigo 5º do Decreto 3.724/2001.
É possível notar que a LC 105/2001, assim como os dispositivos de sua regulamentação, não permitem o acesso à informação financeira que extrapole o interesse da autoridade fiscal.
No caso da e-Financeira, se for apurada divergência substancial entre informações declaradas pelo contribuinte quanto ao volume financeiro transacionado em determinado período, é possível o estabelecimento de um procedimento de fiscalização por parte da autoridade fiscal.
Instalada uma fiscalização, e acessadas as informações pela RMF, temos que (i) as entradas financeiras não identificadas presumem-se receita para fins de tributação (artigo 42 da Lei 9.430/96) e as saídas financeiras para beneficiário não identificado estão sujeitas ao Imposto de Renda Retido no Fonte no percentual de 35% (artigo 61 da Lei 8.981/95).
Não existe, assim, autorização legal para que a Receita demande informações às instituições financeiras que não possuam relevância para os fins tributários. É irrelevante, por exemplo, para fins fiscais, saber qual a origem e qual o destino dos valores transitados pela conta corrente, uma vez que a lei dá efeito tributário adequado para referidos casos. Não pode, assim, a Receita, demandar informações sobre DOCs, TEDs, cheques, origem e destino de pagamentos, por absoluta irrelevância fiscal. Requisições dessa natureza extrapolam o objetivo da fiscalização tributária e podem, ou melhor, devem ser recusadas por parte das instituições financeiras, por constituir quebra indevida do dever de sigilo.
Nesse contexto é que a decisão proferida pelo ministro Dias Toffoli, na apreciação do RE 1.055.941, mostra-se, a meu sentir, verdadeiramente acertada. A decisão de sua excelência, ao contrário do que dizem seus críticos, não proibiu que fossem utilizadas informações oriundas do Coaf e da Receita para instalação de procedimentos penais, mas apenas limitou a validade dessas informações àquilo que a lei defere como poder de requisição administrativa de referidos órgãos. Veja-se:
“Deve ficar consignado, contudo, que essa decisão não atinge as ações penais e/ou procedimentos investigativos (Inquéritos ou PICs), nos quais os dados compartilhados pelos órgãos administrativos de fiscalização e controle, que foram além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais, ocorreram com a devida supervisão do Poder Judiciário e com a sua prévia autorização” (sem grifos no original).
Neste ponto, necessário consignar que, quanto ao Coaf, as informações fornecidas pelas instituições financeiras devem se referir a dados específicos de suspeitas de atividades ilícitas descritas na Lei 9.613/98 — lavagem de dinheiro — e que poderão ser intercambiadas para os fins de instalação dos procedimentos de fiscalização pelos órgãos competentes, em especial o Ministério Público Federal.
Se houver extrapolação na requisição administrativa de informações financeiras para além daquilo que a lei defere aos órgãos administrativos de fiscalização, tais informações serão ilícitas. Apenas o Poder Judiciário tem o poder de promover o acesso irrestrito às contas bancárias dos cidadãos e das empresas. É inaceitável, no Estado Democrático de Direito, que os órgãos de persecução penal busquem, na cooperação com os órgãos de fiscalização administrativa, suprimir a atividade judicante e o poder que a Constituição deferiu exclusivamente ao Poder Judiciário.
Não têm a Receita e o Coaf poder de devassa nas contas dos cidadãos e das empresas, assim como referidos órgãos não podem funcionar como atalho para acesso indevido de informações relevantes à persecução penal. Cabe ao Ministério Público, no exercício de sua competência e diante dos elementos e indícios coletados e intercambiados nas esferas administrativas, demandar ao Poder Judiciário o acesso irrestrito às informações financeiras dos investigados, atendidos os requisitos exigidos pela lei penal.
Em suma, é necessário que cada órgão, no exercício do poder que tem, limite-se à sua competência e à sua função, pois ninguém pode estar acima da Constituição e das leis.
[1] TEIXEIRA, Alexandre Alkmim. Compliance e Informação Fiscal. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2019.
Alexandre Alkmim Teixeira é advogado, professor da Faculdade Milton Campos, da PUC Minas e da USP Ribeirão Preto, PhD pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha) e doutor em Direito Tributário Internacional pela USP.
Fonte: Conjur
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