Parte da doutrina defende tratar-se de um direito real de garantia. Para outros, seria uma espécie de propriedade resolúvel.
Não é de hoje que o tema da alienação fiduciária é enfrentado pela doutrina e por nossos tribunais. As discussões sobre o tema abordam desde a natureza jurídica do instituto até a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de alienação fiduciária, por exemplo. O objetivo precípuo deste artigo é discutir se seria possível ou não firmar um contrato de alienação fiduciária de fração ideal de imóvel.
No que diz respeito à natureza jurídica da alienação fiduciária, não há consenso doutrinário ou jurisprudencial. Parte da doutrina defende tratar-se de um direito real de garantia. Para outros, seria uma espécie de propriedade resolúvel. Por fim, há quem indique que sua verdadeira natureza jurídica é de um patrimônio de afetação (1)
Tenha a natureza que for, pode-se afirmar que, atualmente, a alienação fiduciária é a principal forma de constituição de garantia real, sendo caracterizada pela transferência da propriedade resolúvel de um bem imóvel do devedor fiduciante, ou de um terceiro garantidor, ao credor fiduciário até que a dívida seja paga. Nas palavras de Melhim Chalhub (2):
“Na medida em que o devedor transfere a propriedade do imóvel ao credor, até que a dívida seja paga, resulta claro que essa modalidade de alienação caracteriza-se pela temporariedade e pela transitoriedade; o credor adquire o imóvel não com o propósito de mantê-lo como sua propriedade, em caráter perpétuo e exclusivo, mas com a finalidade de garantir-se, mantendo-o sob seu domínio até que o devedor-fiduciante pague a dívida, e somente até aí.”
Na alienação fiduciária, usada em larga escala no mercado imobiliário, o devedor, fiduciante, transfere a propriedade resolúvel de seu bem ao credor ,fiduciário, que é geralmente uma instituição financeira (1). Enquanto a instituição financeira garante o pagamento de uma compra e venda, o comprador, que não dispunha do montante integral para quitar sua dívida junto ao vendedor, dá a propriedade resolúvel do imóvel que está sendo adquirido ao banco, até que quite sua dívida para com este, mantendo, porém, a posse direta do bem. Uma vez quitada a dívida, o credor fiduciário emite um termo de quitação da alienação fiduciária, o qual deve ser levado ao registro de imóveis, para que esta seja cancelada, tornando, assim, o devedor fiduciante proprietário pleno.
O instituto foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro em 1965, com a lei Federal 4.728, lei essa que fomentou o mercado financeiro e de capitais e que previu como objeto de garantia somente bens móveis. À época, destinava-se a garantir contratos de venda de veículos automotores e de eletrodomésticos, ampliando o mercado de crédito e combatendo a inflação existente à época.
A importância do tema cresceu, porém, com a publicação da lei Federal 9.514/97. Apesar de a referida lei não explicitar, ressalta-se que, além da possibilidade de a alienação fiduciária ser utilizada no financiamento do próprio imóvel que a garante, ela também pode ser usada como estímulo à atividade empresarial. Nas palavras de Erik Gramstrup (2):
“Geralmente, a lei refere-se ao segundo tipo, pois seu objetivo era o de organizar o sistema financeiro imobiliário, o que não significa que o primeiro tipo “propriedade transmitida” não seja possível juridicamente. A jurisprudência pátria reconhece-o e chega mesmo a destacar suas peculiaridades.”
Em relação ao mercado imobiliário, a garantia passou a ser amplamente utilizada, em verdadeira substituição à hipoteca (3). Isso porque, apesar de ambos os direitos reais de garantia recaírem sobre um bem imóvel específico do devedor, como salvaguarda em caso de eventual descumprimento de uma obrigação formada, o fato é que, quando da constituição da alienação fiduciária, o credor já adquire a propriedade, resolúvel, do bem, enquanto que, na hipoteca, o imóvel permanece no patrimônio do devedor. Ademais, a excussão da garantia fiduciária segue o procedimento, extrajudicial, previsto na lei Federal 9.514/97, sendo segura, célere e econômica. O início de tal procedimento depende apenas da mora do devedor fiduciante. Já na hipoteca, o rito, judicial, é rígido, lento e, portanto, mais oneroso, no tocante à recuperação do crédito, caso inadimplente o devedor.
Posteriormente, como bem ensina Melhim Chalhub, novas roupagens foram dadas ao instituto em nosso ordenamento (4).
“Assim, coexistem no direito positivo a propriedade fiduciária sobre bens móveis para garantia de quaisquer dívidas, regulamentada pelos arts. 1.361 a 1.368-B do Código Civil, e as normas do art. 66-B da lei 4.728/65, somente para garantia de obrigações contraídas no âmbito dos mercados financeiro e de capitais, bem como do fisco e da previdência social, além de outras leis esparsas que regulam diferentes espécies de propriedade fiduciária em garantia, entre as quais também ressalta a lei 9.514/97, que dispõe sobre a alienação fiduciária de bens imóveis em garantia, à qual veio agregar-se o art. 51 da lei 10.931/04, segundo o qual “as obrigações em geral também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros (…), por alienação fiduciária de coisa móvel”.”
Compreendida a importância do tema no mercado imobiliário, mister se faz apresentar os argumentos que justificam a possibilidade de ser firmado um contrato de alienação fiduciária apenas de fração ideal de um imóvel.
A 1ª vara de registros públicos de São Paulo, analisando a dúvida suscitada pelo 14º oficial do registro de imóveis da capital paulista, a requerimento de Ter Fratelli Administração de Patrimônio e Investimentos Ltda, após negativa de registro de instrumento de alienação fiduciária dos imóveis matriculados sob os nºs 138.097 e 138.098 daquela Serventia, manifestou-se no sentido de não haver impedimento, no ordenamento jurídico, para que fosse dado cumprimento ao que foi requerido pela parte (5).
“(…) O óbice se deu pois a alienação fiduciária foi instituída sob parte ideal de 50% do bem, de titularidade do devedor fiduciante, sendo que o oficial entende pela impossibilidade de instituição de tal garantia em parte ideal do imóvel, devendo os demais co-proprietários participar do instrumento, para o fim de alienar fiduciariamente a totalidade do bem. Sustenta o oficial que a alienação de apenas 50% do bem não está prevista em lei e que traria problemas no processo de consolidação da propriedade. Juntou documentos às fls. 04/85.
O suscitado manifestou-se às fls. 86/95, arguindo pela possibilidade de registro na forma em que requerido.
O Ministério Público opinou às fls. 99/102 pela improcedência da dúvida.
É o relatório. Decido.
Com razão a D. Promotora. De início, repito a já mencionada doutrina de Melhim Namem Chalub sobre o tema:
‘Na medida em que visa, preponderantemente, a expansão do crédito imobiliário, em geral, a lei admite a alienação fiduciária de terreno ou de frações ideais de terreno, possibilitando larga aplicação nas incorporações imobiliárias, nas quais o contrato de alienação fiduciária terá como objeto a fração ideal do terreno objeto do financiamento e as acessões que sobre ela vierem a ser erigidas.’ (Negócio Fiduciário. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2009, p. 232)
De fato, não há previsão específica na lei 9.514/97 acerca da possibilidade de alienação fiduciária de parte ideal de imóvel. Todavia, assim dispõe o art. 1.314 do Código Civil:
‘Art. 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la. Parágrafo único. Nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros.’
Da parte final do caput extrai-se a permissão legal para que a parte ideal seja gravada pelo condômino. Assim, sendo a alienação fiduciária espécie de garantia (art. 17, IV, da lei 9.514/97), poderá o condômino gravar sua parte ideal do imóvel por instrumento que institua a alienação fiduciária. Tampouco está presente a exceção prevista no parágrafo único do art. 1.314 do CC, uma vez que na alienação fiduciária a posse direta, o gozo e o uso do bem permanecem com o devedor fiduciante.
Além disso, não vejo necessidade de anuência ou ciência dos demais condôminos acerca da alienação fiduciária, seja porque o art. 1.314 não o exige para que o bem seja gravado, seja porque o direito de preferência previsto no art. 504 do CC diz respeito a “vender a sua parte a estranhos”. Não se tratando a alienação fiduciária de compra e venda, e sim de instituição de garantia (ainda que a propriedade resolúvel seja transferida a terceiro), não entendo que o registrador deve exigir do apresentante tal ciência ou anuência. Não obstante, tal preferência é exercível quando do leilão do bem no caso de não purgação da mora pelo devedor. Nesta hipótese, o registro da arrematação somente pode ocorrer se comprovado que os demais condôminos foram notificados acerca da realização do leilão. Destaco, por fim, que o leilão da parte ideal não leva a extinção do condomínio, uma vez que a hasta terá por objeto parte ideal do bem, não havendo qualquer impedimento legal de que haja aquisição de parte ideal de imóvel em leilão extrajudicial. Pelo contrário, a realização de negócios jurídicos cujo objeto seja parte ideal de imóvel é comum na economia, sendo o entrave ora apresentado pelo Oficial indevido e contrário aos objetivos de livre circulação da propriedade no mercado. Do mais, poderão os antigos condôminos, se não exercerem o direito de preferência, manter o condomínio com o arrematante ou promover a alienação judicial de coisa comum ou sua divisão, a depender das características do imóvel.
Do exposto, julgo improcedente a presente dúvida, determinando o registro do título apresentado. Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios decorrentes deste procedimento.
Oportunamente, arquivem-se os autos.
P.R.I.C.”
O colégio recursal do Rio Grande do Sul, consultado sobre o tema (6), proferiu a seguinte resposta:
“CONSULTA:
Foi protocolada em nossa serventia uma Escritura de compra e venda com alienação fiduciária, porém o detalhe é que o objeto do documento é um imóvel rural de 500 hectares em só matrícula sendo que é feito a compra e venda pura e simples de 250 hectares e a compra e venda com alienação fiduciária dos outros 250 hectares, é possível alienarmos fiduciariamente apenas a metade do imóvel sem desmembrá-lo?
RESPOSTA:
Totalmente viável o pretendido. Mesmo em condomínios gerais/comuns/civis possível é existir a alienação fiduciária registrada dentro de um todo maior, envolvendo mera fração ideal.
Inclusive é lícito ao condômino alienar a respectiva parte indivisa ou gravá-la (art. 1.314 CC).
Em se tratando de alienação contratada apenas com o escopo de garantia não se aplica a exegese do artigo 504 CCB, ao exemplo.
Destarte, viável será a aceitação de alienação fiduciária tendo como objeto uma fração ideal do imóvel, mesmo que sem a anuência dos demais condôminos, onde houver condomínio geral/comum/civil. Se o imóvel é de propriedade exclusiva, mais cristalina ainda a possibilidade de se alienar fiduciariamente tão somente uma parte ideal do bem. Aliás, isso se resolve nos princípios basilares do direito privado pátrio do tipo: autonomia privada, liberdade contratual e liberdade de contratar. Ou seja, trata-se de mera “liberalidade” inter-partes, credor fiduciário e devedor fiduciante. Se o credor aceitou a fração ideal em garantia de alienação fiduciária imóvel e o devedor fiduciante também está de acordo, após cumpridos os requisitos e as exigências legais afeitas à espécie, caberá ao Registrador de Imóveis recepcionar o título e registrá-lo.
Lembramos apenas que para a aquisição de imóvel rural cuja área não esteja abrigada pelo lapso carecial do geo, este é obrigatório.
Saudações,
Colégio Registral do RS”
A Constituição Federal de 1988, no art. 5°, garantiu aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país não apenas o direito à propriedade, como também o de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Embora não exista nenhum dispositivo específico sobre o direito de alienar fiduciariamente fração ideal de imóvel na lei 9.514/97, ressalta-se que não se poderia afastar a autonomia privada e a liberdade de contratar sem que houvesse determinação legal nesse sentido. Como é de notório conhecimento, o princípio da legalidade permite que o cidadão faça tudo aquilo que não for vedado pelo ordenamento jurídico, e não somente aquilo que for expressamente permitido. Com efeito, deve haver uma relação de não contradição entre aquilo que for realizado pelo particular e os ditames da ordem legal vigente, diferentemente do que se dá em relação ao agente público que somente pode atuar de acordo com o que for determinado em lei, relação de subordinação. Além disso, o artigo 1.314 do Código Civil permitiu ao condômino, alhear sua parte ideal ou gravá-la. Assim, resta claro que há permissão para tanto.
Ademais, conforme retratado, verifica-se que não há incidência das hipóteses tanto do parágrafo único do art. 1.314 do Código Civil, já que ao constituir o direito real de garantia o devedor permanece na posse direta, gozo e uso do bem, como a do artigo 504 do referido diploma, vez que na alienação fiduciária o que se pretende é garantir o cumprimento de uma obrigação principal, não se falando em direito de preferência, vez que não há venda da propriedade imóvel. Ainda que houvesse o direito de preferência dos demais condôminos, tal fato não gera óbice ao registro alienação fiduciária de fração ideal de imóvel, vez que não é causa de inexistência ou nulidade absoluta do negócio jurídico em comento, mas, tão-somente, de ineficácia perante os demais condôminos. Neste sentido são os ensinamentos de Nelson Rosenvald (7) :
“Mas quando o bem é materialmente indivisível, o art. 504 dispõe que a alienação do quinhão do condômino fica condicionada à concessão de direito de preferência aos demais condôminos, sob pena de ineficácia relativa do ato. Frise-se que a exigência legal está voltada para a eficácia do próprio negócio e não para a validade do ato. Portanto, o ato praticado em desconformidade com o dispositivo em análise é válido, mas não produz consequências em relação aos demais condôminos, eventualmente prejudicados.”.
Diante do exposto, pode-se afirmar que é possível a contratação de alienação fiduciária de fração ideal de imóvel, seja em razão da ausência de vedação legal, seja por tal negócio jurídico concretizar a função social da propriedade, pois viabiliza mais uma forma de livre circulação de bens no mercado.
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1 Cumpre ressaltar que, nos termos do § 1º do art. 22 da Lei nº 9.514/97, qualquer pessoa, física ou jurídica, poderá contratar alienação fiduciária. Não se trata de instituto privativo das entidades que operam no Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI ou no Sistema Financeiro da Habitação (SFH).
2 GRAMSTRUP, Erik Frederico. Alienação fiduciária de coisa imóvel: quem é o sujeito passivo do IPTU? In José Guilherme Gregori Siqueira Dias, Marcelo Terra, Tatiana Bonatti Peres. Alienação fiduciária de bem imóvel e outras garantias. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 17-18.
3 Em especial quanto aos imóveis urbanos. Imóveis Rurais ainda são objeto de hipoteca, principalmente por tal direito real de garantia admitir a multiplicidade de hipotecas sobre o mesmo imóvel, como dispõe, expressamente, o art. 1.476 do Código Civil: “O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor.”.
4 CHALHUB, Melhim Namem, op cit., p.142.
5 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1ªVara de Registros Públicos, Dúvida, processo n°100.6191-74.2019.8.26.0100, Tania Mara Ahualli, data do julgamento:18 de fevereiro de 2019.
6 Disponível em: https://www.colegioregistralrs.org.br/registro_de_imoveis/alienacao-fiduciaria-fracao-ideal-2/. Acesso em: 22 de jan. de 2022.
7 PELUSO, Cezar (coord.); GODOY, Claudio Luiz Bueno de (et al.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 15ª ed. Santana de Parnaiba (SP): Manoele, 2021, p. 537.
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Bianca Rolfsen é advogada e sócia do escritório Rolfsen, Balsalobre e Cusciano Advogados. Foi Oficiala Substituta no Cartório de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Porangaba-SP. Foi Vice-Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da 101ª Subseção da OAB-SP de 2019 a 2021. Especialista em Direito Imobiliário pela Escola de Direito da FGV-SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM.
Rodrigo Feracine Alvares é oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito do Itaim Paulista, Comarca de São Paulo-SP. Professor convidado em cursos de Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral. Foi: Tabelião de Notas e de Protestos de Caraguatatuba-SP. Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas e Naturais de Aguaí-SP; Tabelião de Notas e de Protestos de São Pedro-SP; Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais de Amparo-SP; Procurador Federal; Advogado. Doutorando em Direito pela FADISP-SP. Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Especialista em Direito pela Universidade Anhanguera – Uniderp – e pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ).
Fonte: Migalhas
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