O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 6)
Tal o vimos na exposição anterior, o grande jurista notário buenairense Bernardino Montejano – à luz da doutrina clássica das virtudes sociais – distribui a matéria da moralidade pública em hábitos anexos à justiça e à fortaleza, juntando-os à virtude cardeal da temperança, ultimando o conjunto com as virtudes da exemplaridade, do espírito de serviço e da formação cívica.
Entre as anexas da virtude da justiça, Montejano destaca os hábitos de veneração, honestidade e civilidade, dividindo o da veneração em três espécies: a religião, a piedade (familiar e patriótica) e a observância. E, por igual, divide as virtudes de honestidade (gratidão, vindicta e veracidade) e de civilidade (afabilidade e liberalidade).
Chamam-se virtudes anexas ou partes potenciais de uma virtude principal os hábitos dela derivados que não lhe atingem a completude, mas se subordinam a ela e participam de algum modo de sua perfeição. Assim, p.ex., entre as virtudes anexas da justiça, virtude cardeal justiça que tem por elementos o débito e a igualdade, contam-se alguns hábitos a que falta o requisito do debitum (inter plures: a gratidão, a amizade, a liberalidade) e outros a que falta a igualdade estrita (a religião e a observância); essas virtudes, por importantes o sejam, não satisfazem plenamente a justiça, porque “ou a dívida não é inteiramente satisfeita, ou não é uma dívida no sentido rigoroso da palavra” (Gerlaud).
A religião, virtude moral, é uma das espécies da virtude de veneração. Esta, a veneração é, por sua vez, uma parte anexa da virtude cardeal da justiça, integrada, além da religião, pela piedade (familiar e patriótica), a observância e o respeito. São elementos essenciais da veneração a reverência e a obediência – reverentia et obsequium.
Parte anexa da virtude moral da justiça, a religião presta a reverência e o culto devido a Deus – religio est quæ Deo debitum cultum affert (S.th., IIa.-IIæ., q. 81, 5, resp.)–, e seu ato essencial é a devotio (termo latino que, no vernáculo correspondente, “devoção”, não expressa bem o vigor e a profundidade do conceito; devotio não é o mesmo que simples atração pelas coisas divinas, mas, isto sim, o oferecimento da própria pessoa e de sua subordinação a Deus -cf. Mennessier).
Esse reconhecimento da honra e da subordinação devidas a Deus é um dado universal da história humana, testemunho de uma dependência antropológica – ôntica e vital (cf. Manuel Guerra, Antropologías y teología, 1976)– que se reflete em sacrifícios, orações, gestos corporais, ritos, etc.–, e a sociologia da religião confirma-lhe a importância na direção da moralidade das condutas (veja-se, de modo impressivo, Pitirim Sorokin, The American sex revolution, 1956), isto, comumente, nada obstante o fato de em estendidos casos históricos, terem a idolatria, a alteração do culto legítimo e práticas supersticiosas deturpado a reverência e o culto devido a Deus (vidē, por brevidade de causa, Paul Ortegat, Philosophie de la religion, 1948).
Não faltarão, ao largo da história da humanidade, episódios em que muito graves condutas sociais derivarão de deturpações na honra e culto devidos (p.ex., pense-se em Sodoma e Gomorra ou, modernamente, nos sacrifícios humanos promovidos por Montezuma), mas, sendo embora de todo certo que a veneração deve destinar-se a um só Deus e sob uma única razão – uni Deo secundum unam rationem –, o fato é que, ordinariamente, a religião, ainda quando se dissocie do debitum veridicum – o débito verdadeiro –, tende muito frequentemente a, em maior ou menor medida, preservar valores morais.
Prosseguiremos.
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