Notas sobre as Notas

Notas sobre as notas (n. 17)

Publicado em 15/05/2019

O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 2)

Em uma de suas acepções, que corresponde à de moralidade pública como ética referente às condutas praticadas no espaço público, não se está a tratar do conjunto integral dos costumes de uma dada sociedade, mas só das regras relativas às ações que se exteriorizam em público, é dizer, do que se pratica diante de todos, em local acessível à vista de todos.

Noutro de seus sentidos, por moral pública designa-se também a ética profissional dos servidores públicos, denominação que se traslada da circunstância de esses servidores se vocacionarem, por profissão e de modo específico, à consecução do bem público, i.e., ao bem da comunidade.

Pode ainda falar-se na moral pública, assim ficou dito, como uma ética interna da administração pública.

Por todos estes significados, de alguma forma, poderiam transitar exigências de conduta dos notários, ainda que só num certo e restrito aspecto possam eles dizer-se servidores públicos.

Mais decisivamente, contudo, está o notário chamado a observar a moral pública, enquanto moral da comunidade, em seus princípios e fundamentos.

A invenção (scl.: a descoberta) desses princípios e fundamentos reguladores das condutas comunitárias não é nada simples, especialmente no domínio de estados laicos, tal o veremos.

À partida, saliente-se, a moral da comunidade pode entender-se reduzidamente de maneira fenomênica ou positivista: é então apenas o conjunto factual da média das opiniões, usos e costumes dos habitantes, num dado tempo, de uma determinada sociedade política. Isto redunda, entretanto, não só num agrupamento de regras provavelmente sempre relativas, mas também sujeitas, de fato, a uma variação incessante, cujo conhecimento é de todo árduo (é o que se designa por moral demoscópica, ou seja, posta ao dia, com as oscilações dos sentimentos e das opiniões penduleantes do povo).

Mais adequadamente haveria de pensar-se na moral pública ꟷenquanto moral da comunidadeꟷ à luz de seus princípios e fundamentos, recrutados estes segundo as normas da lei natural, conhecidas pela razão e, afeiçoadas àquela, as regras singulares da tradição de cada comunidade (o que Vallet de Goytisolo chamou de “princípios tradicionais de cada país”; normas extraídas da vida em comum de gerações sucessivas).

Neste passo, todavia, o grave problema que acomete o reconhecimento da moral pública está na ausência, em muitos estados, de uma autoridade para, em derradeiro, compreender e assinar o sentido adequado dos ditames da lei natural que estejam mais apartados do primeiro princípio da razão prática, princípio este ꟷagir o bem, evitar o mal (bonum faciendum, malum vitandum)ꟷ que é o pilar de toda possível moral. Vem de molde lembrar que Miguel Ayuso, nas páginas de seu muito valioso Constitución -El problema y los problemas (Madri: Marcial Pons, 2016), observou que nisto, nesta falta de autoridade, está posto o drama de la interpretación del derecho natural.

Com efeito, se, a exemplo do que ocorre com os primeiros princípios da razão especulativa (ad exempla, o da identidade e o da contradição), também o primeiro princípio da razão prática ꟷou seja, o princípio sinderéticoꟷ é conhecido universalmente por uma quase intuição humana, e se as conclusões imediatas desse princípio (v.g., não matar o inocente, não furtar, não prestar falso testemunho) são inferíveis ut in pluribus (é dizer, em condições correntes, por todos os homens ꟷembora, já aqui, possa falhar esta apreensãoꟷ, tem de admitir-se, e a história humana bem o confirma, que as conclusões, tanto mais remotas sejam daquele princípio da sindérese, tanto mais complexas e discutíveis se mostrem.

Daí que seja de todo relevante, não só para os notários, mas para todos os responsáveis por uma certa pedagogia comunitária, saber em que fundamento solidar as regras da moral pública, enquanto moral da comunidade.

Uma coisa era que houvesse, ao tempo da Cristandade, uma afirmação última autorizada a que vincar a compreensão de uma ética de todo comum para a sociedade. Outra, muito diversa, é a situação em que se encontram os estados laicos, aos quais falta, exatamente, uma autoridade capaz de declarar normas de moral comunitária.

Prosseguiremos no exame desta trajetória importante de reconhecimento das normas de conduta que, no âmbito da moral pública, devem não só observar-se, pessoalmente, mas, por igual, pedagogicamente, pelos notários.

SOBRE O AUTOR

RICARDO DIP

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, desde janeiro de 2005, Ricardo Henry Marques Dip, foi Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do mesmo Estado, a partir de novembro 1994. Também presidiu a Turma Especial de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo e foi Secretário-Geral da Escola Paulista da Magistratura. Atualmente, além das funções jurisdicionais na 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça paulista, é Supervisor da Biblioteca e coordenador do Departamento de Gestão do Conhecimento Judiciário do mesmo Tribunal.

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