Notas sobre as Notas

Notas sobre as notas (n. 14)

Publicado em 03/04/2019

NOTAS SOBRE AS NOTAS (n. 14)

Des. Ricardo Dip

SOBRE A CREDIBILIDADE DO NOTÁRIO (segunda parte)

  O dever de veracidade é universal, porque a verdade é o fim do entendimento humano, de sorte que, para a perfeição de sua natureza, todo homem é vocacionado a alcançar a verdade. Se, por exemplo e dada sua influência na civilização ocidental, tomarmos em consideração a doutrina cristã, passagens expressivas, a propósito, vinculavam, já no Antigo Testamento, a verdade ao amor -e, com efeito, a verdade é o bem da vontade, tanto quanto o bem é a verdade da inteligência (vide os Salmos ns. 24, 10; 56, 11; 84, 11); mais incisivamente, a verdade é o próprio Deus para o cristianismo: lê-se no Evangelho joanino, 14, 6: Dicit ei Iesus: Ego sum via et veritas et vita.

Este dever não é apenas individual, mas político, porque, se o homem tende por natureza à verdade, tem direito a ela, por justiça, nas suas relações sociais. Em palavras de Martin Rhonheimer, a mentira -ainda aquela a que falte a intenção de enganar (intentio fallendis)- sempre deteriora a comunicação humana e, com isto, deprime a relação de justiça entre os homens.

Essa universalidade do verum como fim que é de todos os homens, todavia, não impede que haja gradações na variedade -quer objetiva, quer subjetiva-  do dever de observância da verdade. Assim, uma facécia (mendacium jocosum), por exemplo, e ainda que ela possa merecer, em dados quadros, algum gênero de censura, não constitui violação moral gravosa, sempre que se considerem seu significado e a intenção de gracejar.

Também subjetivamente, há pessoas de que mais graduadamente se espera a fidelidade da palavra, e entre elas está quem, por ofício, exercita as magistraturas, seja a política, seja a repressiva, seja, ao fim, a magistratura da paz jurídica, própria dos notários e registradores públicos.

S. Agostinho escreveu dois interessantes opúsculos sobre a mentira. O primeiro deles, De mendacio, redigido entre os anos 394 e 395; o segundo, Contra mendacium, redigido entre 420 e 422. Naquele, que começa com uma sentença muito significativa: “a mentira é um grande problema” (magna quæstio est de mendacio), conceitua mentir “o que tem uma coisa na mente e expressa-a diversamente por meio de palavras ou outros signos”, ensinando não ser nunca moralmente lícita a mentira, porque não cabe fazer o mal para que dele venha o bem (ou seja, os fins não justificam os meios). E, no Contra mendacium, dirá, fortemente, não ser verdade que alguma vez se possa mentir, pois que mentira alguma pode ser justa: “não há um pecado justo, como não há coisa injusta que seja justa”

Por sua vez, S.Tomás de Aquino -para quem a mentira é o que se diz contra a mente (mendacium nominatur ex eo quod contra mentem dicitur)- trata, com expresso apoio também no De mendacio agostiniano, na questão 110 da IIa.-IIæ. da Suma teológica, dos vícios opostos à veracidade. A noção de mentira ali se divide em três espécies: (i) a do falso material (mera expressão de mentira, sem vontade de mentir, nem intenção de enganar: falsitas materialiter); (ii) a do falso formal (a mentira exprimida com a vontade de enunciar o falso: falsitas formaliter vel propter voluntatem); (iii) a do falso efetivo, em que há a intenção de enganar (falsitas effective) e constitui uma certa consequência ou aperfeiçoamento da mentira (cf., especialmente, o ad3um da q. 110).

Diz na sequência o Aquinate que a mentira é má por natureza –mendacium (…) est malum ex genere-, sendo “antinatural (innaturale) e alheio da ordem devida significar por uma palavra ou gesto o que não se tem no pensamento”.

Mas por quais motivos fundamentais alguém é levado a mentir?